Páginas

REPORTAGENS

Belo Monte, história antiga ferindo o coração da Amazônia

Por José Pedro Martins


Crianças indígenas no I Encontro dos Povos Indígenas no Xingu,
em Altamira, 1989: começou aí o movimento contra Belo Monte
(Fotos José Pedro Martins) 


       Nesta quarta-feira, 26 de janeiro de 2011, o Ibama anunciou a licença de instalação da usina hidrelétrica de Belo Monte, prevista para o rio Xingu, na Amazônia. O projeto é de uma das maiores hidrelétricas do planeta, o que significará inundação de muitas terras e perda de biodiversidade na maior reserva de vida do mundo. Ambientalistas, cientistas, povos indígenas, Igreja e muito mais gente já se pronunciaram, advertindo para os impactos dessa megaobra, típica do regime militar em plena juventude da democracia brasileira, no momento em que o país vive a transição do governo de um ex-líder sindical para a primeira mulher a ocupar a Presidência da República.
     Um dos elementos mais notáveis nessa história é que esse projeto é bem antigo. Muitos jovens que hoje se somam ao movimento contrário a Belo Monte nem tinham nascido quando os primeiros estudos foram elaborados. Tenho acompanhado essa história praticamente desde o começo, pois, então repórter da Agência Ecumênica de Notícias, fui mobilizado para cobrir o I Encontro dos Povos Indígenas no Xingu, entre 20 e 25 de fevereiro de 1989 em Altamira (PA). Evento que marcou momento novo na mobilização dos povos indígenas brasileiros, motivado justamente pelos anúncios que o governo José Sarney vinha fazendo, de construção de barragens no rio Xingu. A primeira delas seria a de Kararaô, nome absolutamente impróprio, porque significa grito de guerra em Kaiapó. O nome mudou, para Belo Monte (outro nome bem inadequado, não?), mas a idéia é praticamente a mesma, agora retomada com força redobrada.


Argumentos típicos da ditadura, e que provavelmente serão repetidos
 agora, foram usados para defender a usina de Kararaô,
hoje Belo Monte: quem não for a favor, é contra o Brasil

       Fevereiro de 1989, começo do último ano do governo José Sarney. O Brasil ainda respirava ares da ditadura, e táticas e argumentos típicos do regime militar foram utilizados para mobilizar a população de Altamira e outras cidades da Amazônia para defender a usina de Kararaô, em atividades paralelas ao Encontro dos Povos Indígenas. Quem era a favor, era brasileiro, do contrário, não era patriota. Algo como o "Brasil, Ame-o ou deixe-o" da ditadura. Faixas e cartazes foram espalhados por Altamira com esses dizeres.  
     As justificativas de sempre, no Encontro de Altamira e agora. A usina trará desenvolvimento, geração de empregos e tudo o mais para a Amazônia. Na época ainda forte, a União Democrática Ruralista (UDR), que teve grande atuação durante o processo constituinte contra a reforma agrária, estava presente em Altamira, defendendo o projeto de Kararaô. 

UDR, que lutou contra a reforma agrária na Constituinte, e que apoiou
Ronaldo Caiado à presidência naquele 1989, apoiou usina de
Kararaô em manifestações paralelas ao Encontro Indígena  

     
      As manifestações dos setores favoráveis à usina de Kararaô, atual Belo Monte, tomaram as ruas de Altamira. Muitos automóveis e caminhões mobilizados para levar a população. Não houve confrontos, mas o clima era muito tenso.
     Ao lado dos povos indígenas, muitos também contrários à usina. Na época era especialmente forte a mobilização dos setores da Igreja Católica simpáticos à Teologia da Libertação, liderados pelo bispo de Altamira, d.Erwin Kreutler, que sempre defendeu os povos indígenas.


Faixa ressaltando que Kararaô estava em sintonia com a Eco-92, a grande conferência sobre meio ambiente e desenvolvimento que seria realizada em 1992 no Rio de Janeiro: Rio receberá novo evento desses em 2012, haverá repeteco pró-Belo Monte? 

     Mas o importante foi, de fato, o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, que reuniu 650 indígenas do Brasil e outros países. Presentes lideranças indígenas como Ailton Krenak, Marcos Terena, Raoni, Davi Yanomami e outros. Também presentes muitos artistas, como Lucélia Santos e o cantor Sting, que na época era muito ligado a Raoni.
    Mais de 3 mil pessoas acabaram participando do Encontro, que reuniu, entre outros, o então presidente do Ibama, Fernando César Mesquita, e o diretor da Eletronorte, Muniz Lopes (depois presidente da estatal, no governo de Fernando Henrique Cardoso). Momento especialmente marcante foi aquele em que a índia Tuíra, em sinal de protesto, encostou a lâmina de um facão no rosto de Muniz Lopes, quando estava apresentando o projeto de Kararaô. O dirigente da Eletronorte não foi ferido, foi apenas um susto, mas não deixou de representar a disposição dos povos indígenas em defender a floresta, o seu modo de vida, a sua vida.

Indígenas presentes no Encontro de Altamira reproduziram aspectos
de seu modo de vida do lado de fora do local onde o evento
 estava sendo realizado: a defesa das raízes da cultura brasileira       

     Ingrediente crucial do I Encontro dos Povos Indígenas no Xingu foi a articulação dos povos da região. Foi o maior encontro indígena até então realizado na história brasileira. Uma retomada, depois de séculos de extinção e de abandono. Foi muito importante na organização do Encontro a contribuição do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), que na época já  era uma das principais organizações em defesa dos povos indígenas no Brasil. A sede da AGEN, onde eu trabalhava, durante muito tempo funcionou nas instalações do CEDI na avenida Angélica, em São Paulo. Era maravilhoso acompanhar o entusiasmo daquele pessoal em defender os índios, as nossas mais fortes e profundas raízes.
     O CEDI é o antecessor do atual Instituto Socioambiental (ISA), que continua na mesma linha, tendo sido um dos apoiadores do II Encontro dos Povos Indígenas no Xingu, em 2008. O Encontro de Altamira, em 1989, de fato fortaleceu os povos indígenas. Tanto que eles, em conjunto com seringueiros e demais povos da floresta, foram fundamentais para barrar o projeto da hidrelétrica. Que agora volta, reformatado, e que ainda vai gerar muita polêmica.  Entendo que a Amazônia, em função desse projeto, voltará ao primeiro plano da agenda socioambiental internacional. E o governo brasileiro será muito criticado. 

Rio Xingu, fonte de vida e referência cultural e espiritual
para muitos povos da floresta. Força para continuar a resistência e
para alimentar a luta por novo modelo de desenvolvimento

       Muito provável que o movimento em defesa da Amazônia, contra as hidrelétricas na Amazônia, se torne muito mais forte a partir de agora. Um dos pontos é a relação entre a usina de Belo Monte e o aquecimento global. Outro, o alto custo das obras, estimadas em cerca de R$ 20 bilhões, sem falar nos custos sociais, ambientais e culturais. Também é muito provável que, no contexto, sejam debatidas as alternativas para a necessária geração de mais energia elétrica para o Brasil, mas que podem ser de fato sustentáveis. Temos o maior litoral do mundo, o que favorece a energia eólica. Temos sol o ano todo, o que ajuda na energia solar. E temos a biodiversidade, com enorme potencial de bioenergia sustentável.
     Araweté, Arara, Assunini, Juruna, Kayapó, Kararaô, Kuruaia, Parakanã, Xipaia e Xikrin. São os povos indígenas que podem ser atingidos, de alguma forma, pela construção de Belo Monte. Na cosmologia Araweté, um pássaro vermelho da floresta foi o responsável por ensinar aos humanos como cozinhar alimentos e quais alimentos podem ser cultivados. Um grande dilúvio teria acontecido, quando a terra se isolou do céu, no início dos tempos. Pois agora, se o projeto de Belo Monte for concretizado, uma grande inundação acontecerá naquele ponto do Pará, fazendo desaparecer muitas espécies, animais e vegetais, privando a humanidade de conhecer muitos segredos da floresta.
      O Rio Xingu continuará sendo uma inspiração, para o movimento socioambiental do século 21 e em especial para os povos da floresta, que têm nele uma referência espiritual e cultural. É uma fonte de vida, e assim deve continuar sendo.