Congadas em Itamogi, Minas Gerais: hierarquias se desfazem como pó
Tchi, tchi, tchi, tchi, bum, tchi, tchi, tchi, tchi, bum. O som da caixa é inconfundível e serve de senha. O terno de congo está chegando com sua miscelânea de cores, sons e ritmos, mesclando os valores culturais e religiosos vindos da mãe África, a bordo dos tristes navios negreiros, com os valores católicos trazidos pelos portugueses. Uma das mais importantes manifestações que contribuíram para firmar a mestiça identidade nacional, embora não tão valorizada e lembrada como o samba ou a capoeira, as congadas estão esparramadas por todo o Brasil, acontecendo, aqui e ali, em determinada época do ano e celebrada com características próprias, dependendo das peculairidades regionais que adquiriram.
As origens das congadas são matéria de controvérsia entre pesquisadores. Uma corrente identifica sua fonte em uma tradição africana, em torno da coroação dos reis do Congo, embora outroas vertentes acreditem que a matriz esteja em Angola. De qualquer modo, a tradição, de tão forte, atravessou o Atlântico e se instalou no coração das senzalas, dos quilombos e de outras comunidades negras no período colonial. Em terras brasileiras, seria uma forma de os escravos reafirmaram suas origens, sua identidade, sua fidelidade aos antepassados.
Como ocorreu com outras expressões culturais e religiosas, as Congadas evoluíram em função do sincretismo que proliferou no período colonial e monárquico. Às raízes africanas foram somadas as influências católicas europeias e as congadas passaram a se tornar momentos de homenagem a santos de grande simpatia e empatia populares, como Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Depois vieram os cultos, durante as congadas, a outros santos queridos, como Santa Ifigênia, Santa Catarina, São Jerônimo e São Domingos. Ecos de tradições europeias também são ouvidos em algumas sonoridades e no enredo das Congadas, que teriam incorporado situações ligadas aos reis Fernando e Isabel, da Espanha, e/ou de Carlos Magno e os 12 pares da França, ou mesmo as cruzadas contra os mouros na Península Ibérica. De fato, existem traços de combates simulados em algumas modalidades de Congadas, em referência às fontes africanas ou europeias.
Sons fortes, batidas pesadas, marcam o compasso dos ternos, os grupos que se reúnem para desenvolver as Congadas. São os sons vindos dos pandeiros, cuícas, reco-recos e, sobretudo, das caixas de congo, espécie de tambores que geralmente vão à frente dos ternos. Impossível não se contagiar com os batuques que evocam o imaginário mestiço, plurirracial, que moldou a alma brasileira. Mas instrumentos de corda também estão presentes, compondo uma sinfonia de sons e ritmos que convida para a dança, inclusive em algumas festas do Divino, nas quais estão presentes modalidades de Congadas.
Em todos os pontos do Brasil, onde as Congadas continuam firmes, resistindo à massificação cultural, as festividades cumprem papel semelhante ao do Carrnaval. São momentos de celebração da liberdade e da vida, como ocorria nos eventos originais - os senhores de engenho davam "permissão" para os escravos celebrarem o cortejo dos reis congos durante um dia específico. Era, óbvio, uma data muito esperada e comemorada. As celebrações também dependiam, no caso de ocorrerem em espaços urbanos, da autorização das autoridades policiais.
As Congadas contemporâneas mantêm, em linhas gerais, o enredo das fontes. Os "congadeiros" cantam as músicas em louvor aos santos, dançam passos com nítida inspiração africana e, em determinadas ocasiões, fazem o transporte dos reis congos, um casal que é escolhido como "majestades" para liderar as festividades. Os reis congos são então acompanhados pelas ruas até sua entrada nas igrejas. Geralmente os reis congos, devidamente vestidos com indumentárias brilhantes, são abrigados sob guarda-chuvas ou outros aparatos protetores. Tudo para salientar a sua realeza. A coroação dos reis congos é momento forte.
Outro momento forte dos cortejos é o das chamadas "embaixadas", que seria uma referência às embaixadas enviadas entre as cortes africanas - embaixadas de paz ou de guerra. Não por acaso, os ternos são geralmente conduzidos sob a batuta de "generais" e "capitães", além, é claro, dos próprios reis congos. Em algumas localidades também acontece o levantamento das bandeiras em homenagem a determinados santos, que se constitui na solenidade que abre oficialmente as congadas daquele ano. Com efeito, as festas das Congadas apenas são encerradas, nesses locais, quando acontece a descida das bandeiras, que ficam instaladas no centro nervoso onde ocorrem as festividades.
Existem Congadas espalhadas por todo o território brasileiro, mas em algumas comunidades elas adquiriram força especial, atraindo a cada ano os moradores locais e também turistas. São os casos de Pirenópolis e Catalão, em Goiás, de Cametá, no Paraná, e de várias cidades mineiras, como Uberlândia, São João del-Rei, Machado, São Sebastião do Paraíso e Itamogi. Desses locais, em especial do sul de Minas, as Congadas foram levadas pelos migrantes mineiros que se estabeleceram nas periferias de grandes cidades, como São Paulo e Campinas. O tradicional Festival do Folclore de Olímpia, no interior paulista, é um momento especial de apresentação de congadas de todo país.
As Congadas incluem, de acordo com a tradição, a apresentação de grupos com funções específicas, como os vilões, os marujos, os catupés, os próprios congos e os moçambiques. Os moçambiques, em particular, seriam os "anjos" que abriam caminho para os acompanhantes dos reis congos. Em algumas regiões, os moçambiques passaram a constituir "ternos", ou grupos próprios, como em São Sebastião do Paraíso e Itamogi, no Sul de Minas. Nesses casos, a indumentária dos "moçambiqueiros" difere dos "congadeiros". Os "moçambiqueiros" são trajados de saias e portam espécies de guizo nos pés, acentuando sua sonoridade própria durante as danças e cantos.
Como em toda grande festa de caráter popular, cultural e religioso, as congadas também são sinônimo de culinária pesada. Em algumas localidades permanece a tradição de oferecimento de farta comida e generosa bebida por parte dos "festeiros", pessoas das comunidades que assumem esse encargo. Em outros locais essa tarefa passou à esfera do poder público, com muita, mas muita comida servida, e de graça, para quem quiser. Em Itamogi, a macarronada com batata é servida com muita generosidade para os "congadeiros", os "moçambiqueiros" e o povo em geral, nos quatro dias da tão esperada festa, que é o emblema da identidade local.
A exemplo de outras legítimas manifestações culturais e religiosas, as Congadas também sofreram mutações inevitáveis em função das mudanças profundas na sociedade brasileira, como no caso da transição de um mundo essencialmente rural para um universo urbano. Para muitos as raízes estão perdidas no passado, ameaçadas por interesses políticos e econômicos que passaram a envolver muitas das festas da alma brasileira. Mas os sinais originais, os ecos da Mãe África e igualmente das influências europeias, continuam presentes, sempre a encantarem e a seduzirem pelo mosaico de sons, ritmos, cores e sabores que ainda vestem, com realeza e fidalguia, as Congadas, momento mágico em que as hierarquias se desfazem como pó. (Texto do livro "Imagens do Brasil - A alma plural e única do Brasil", Volume 1, de José Pedro Soares Martins, Editora Komedi, Campinas, 2010)