MEUS LIVROS NA ÍNTEGRA

AGENDA 21 LOCAL PARA
UMA ECOCIVILIZAÇÃO
(Editora Komedi, 2005)


PREFÁCIO ECOPOLÍTICO E AMOROSO
     

Sessão do Tribunal Permanente dos Povos, também conhecido como Tribunal Lelio Basso, em Berlim, setembro de 1988, marcada por críticas às políticas do Banco Mundial

      É impressionante como o ser humano é capaz de surpreender, para o bem e para o mal. E nesses momentos em que somos surpreendidos por ações humanas pode acontecer uma iluminação, um insight, um vislumbre de que presenciamos algo muito importante, revelador e, por que não, revolucionário.
      Uma das mais doces surpresas que saboreei foi em outubro de 1988, em  pequena praça de Berlim, então ocidental, a poucos metros do famoso Muro erguido no ano em que nasci, 1961. Eu integrava um grupo de jornalistas brasileiros que participava de projeto de cooperação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB).
      Era momento de descanso na intensa programação, que incluía acompanhamento da sessão do Tribunal Lélio Basso, que julgava “os crimes do Banco Mundial contra o Terceiro Mundo”. As ruas de Berlim estavam repletas de ativistas, muitos com o rosto coberto – eram militantes de grupos anarquistas de ação direta, não exatamente adorados pelos policiais alemães.
      Organizações de todo mundo estavam lá, para participar da sessão do Tribunal e outras atividades paralelas à reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial. Grupos anti-racistas da África, de indígenas latinoamericanos e asiáticos, os verdes alemães, as feministas de vários países europeus se misturavam, em clara avant-premiére do que ocorreria anos depois com o Fórum Social Mundial de Porto Alegre.
      Estava ali, nas esquinas da cidade que mais simbolizou a corrida armamentista, a divisão Leste/Oeste, a separação comunismo/capitalismo, a gênese do que anos depois seria batizado de movimentos anti-globalização – ou pelo menos contra a globalização dominada pelo dinheiro e pelo consumo, e não a globalização desejada, a da solidariedade e da reverência pela vida.
      O pedacinho de Brasil estava ali, na bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que surgiu de repente, no meio daquela miríade de cores, idéias e emoções. Nem se imaginava que aquela reunião planetária – uma prévia do Fórum Global, realizado durante a Eco-92 em junho de 1992, no Rio de Janeiro – seria a última grande manifestação internacional antes da queda do Muro de Berlim, o episódio que mudou a cara do mundo e instalou uma Nova Ordem global – a Ordem dominada pela agenda ditada pelos Estados Unidos e aliados.



Manifestação antiglobalização nas ruas de Berlim, durante reunião do FMI-Banco Mundial: gênese do Fórum Social Mundial

      De qualquer modo algo pairava no ar. Existia, em meio àquele clima tenso, agravado pela presença de enorme aparato policial em toda Berlim Ocidental, uma nítida percepção de alguma coisa muito importante estava por acontecer. A sensação tornou-se ainda mais cristalina, naqueles minutos em que nós, jornalistas brasileiros, ajudamos a “pichar” o Muro de Berlim.
      Mas eu falava de insight, daqueles milésimos de segundo em que a intuição fala mais alto e ajuda a iluminar fatos e ocasiões que a razão instrumental não consegue identificar e muito menos compreender. Naquele cenário berlinense, de alta densidade de conflitos ideológicos e espelho da ciência e tecnologia em estado puro – a ciência e tecnologia das armas nucleares, que durante tantas décadas determinaram a política e a economia do sofrido e belo planeta Terra – o que me surpreendeu aconteceu  naquela pequena praça, com turistas, trabalhadores apressados e muitos idosos.
      Enquanto eu e outros dois jornalistas comíamos o inevitável sanduíche de salsicha, uma adorável velhinha se aproximou e nos deu uma garrafa de bebida. Não entendemos nada na hora. Só depois soubemos o que se passou. A velhinha morava em Berlim Oriental, a Berlim comunista, e já havia completado a cota de consumo a que tinha direito em seu rápido trânsito pela Berlim capitalista, a Berlim que recebeu enormes investimentos para se tornar uma vitrine brilhante do modo de vida que os socialistas estavam perdendo – o modo de vida do paraíso do consumo.
      A bebida que ela nos ofereceu era o excesso da cota diária. A velhinha não podia levar a garrafa para o outro lado do Muro, e preferiu oferecê-la para os jovens que com certeza não eram europeus e muito menos germânicos.
      Bebida forte, fortíssima, de derrubar qualquer Muro de Berlim, mas eu pessoalmente recebi aquele presente como um brinde à vida e à fraternidade universal, um brinde ao elo que liga a humanidade e ela à Terra, à Terra Nave Mãe e todas as suas criaturas.
      Os áridos anos inaugurais do novo século, do novo milênio, não são muito pródigos em exaltar esses momentos raríssimos em que nos sentimos parte de algo muito grande. Grande porque nos sentimos irmãos de toda a humanidade e demais espécies de vida. Grande porque desejamos, por causa do sentimento dessa união, e com toda força, que nossos irmãos e irmãs humanos e nossos irmãos e irmãs flores, frutos, animais e recursos naturais vivam em plenitude, vivam felizes e libertos para cumprir com dignidade o seu destino.
      O nome desse momento mágico, em que nos sentimos tão pequenos e ao mesmo tão grandes, com a consciência dessa unidade universal, é amor. Naquele minuto rapidíssimo, naquela Berlim que durante tanto tempo simbolizou o ódio, a separação e a distância – fermentos fatais para as guerras, frias ou quentes – eu senti o amor que sobrevive, no mais íntimo do coração humano, apesar de todos os podres poderes (obrigado Caetano), de todos ditadores e fanatismos que, volta e meia, tentam dividir, fraturar e rebaixar e desvalorizar a vida e a aspiração imemorial – do ser humano e da natureza toda – à cooperação, à ajuda mútua, à união.
      Naquele pequeno gesto da desconhecida velhinha teutônica, mas de significados tão amplos, vejo hoje, há 16 anos de distância, os germens que poderíamos denominar a Ecopolítica do Amor.
      Palavras desgastadas, essas, política e amor. Por tudo o que tem acontecido, em termos de corrupção e impunidade, sobretudo em um país ainda em construção como o Brasil, política deixou de ter o significado original da Polis, da cidade grega. Política, para os gregos, é a arte da busca do bem comum, é o cidadão preocupado com uma vida mais justa e feliz para os demais moradores da cidade, é o dirigente público – democraticamente escolhido pelos eleitores – preocupado apenas com o interesse público.
      Por causa da corrupção e dos crimes impunes, política virou palavra feia, a ser banida dos vocabulários, principalmente dos jovens e adolescentes, aqueles que, amanhã, vão dirigir sua cidade, o seu estado, o seu país. E por causa dessa distorção a atividade política virou, infelizmente, reserva de mercado da classe política, e não dos cidadãos todos, como deveria ocorrer. E sendo feudo de uns poucos, essa forma de política é autoritária, é anti-vida.
      Imperativo o resgate do sentido original de política, da arte do bem comum, se os homens e mulheres de boa vontade do século 21 quiserem continuar aspirando às necessárias transformações que todos, nós brasileiros, nós alemães ou nós asiáticos ou africanos, tanto precisamos e sonhamos.
      Assim como é também urgente, urgentíssimo, o resgate do sentido do amor. Especialmente em um país – de novo – como o Brasil, em que soa piegas ou fora de moda falar em amor, em um contexto de tanta violência, de tanta injustiça, de tanta barbárie cotidiana e de tanto medo de ser feliz...
      Mas se ainda quisermos –de novo – continuar acreditando em uma nova postura do ser humano com o ser humano e com os demais seres vivos, postura essencial à construção de um novo ideal civilizatório, é, também, imperativo o resgate do sentido da palavra amor.


Policiais tomam as ruas de Berlim, durante manifestações
críticas ao FMI e Banco Mundial em 1988

      Só respeitamos o que amamos, só desejamos vida plena e felicidade total de quem amamos – só alcançaremos a liberdade, a dignidade, a chamada inclusão social se amarmos, profundamente, no âmago de nossa alma, o outro ser humano, o outro que é o mesmo, o outro que é diferente mas é igual em humanidade e direitos. E se amamos a diferença e a diversidade entre os seres humanos, também devemos amar a biodiversidade, a diversidade de formas de vida que habitam a Terra, a casa comum de todos.
      Ecopolítica do Amor, talvez seja essa a atitude de que precisamos para percorrer as perigosas trilhas que o século 21 nos reserva. Ecopolítica porque a nova forma de fazer política deve considerar não apenas a busca da relação mais igualitária entre seres humanos  - ênfase que marcou o marxismo, por exemplo. A sobrevivência da vida no planeta depende, hoje, mais do que nunca, da política implícita e explícita também na relação entre o ser humano e o seu entorno, o meio ambiente, o ecossistema urbano e biótico em que vive.
      Na Ecopolítica estão, ainda, os sinais de uma nova forma de fazer a própria política tradicional – não mais a política exclusiva das máquinas partidárias, mas da proatividade cidadã integral, da transparência, da ação em rede, do protagonismo das organizações da sociedade civil.
      E Ecopolítica do Amor porque, ao contrário do modus operandi tradicional da política, focado no conflito, na disputa, da luta pela sobrevivência do mais forte sobre o mais fraco, a construção de uma nova civilização depende de uma política amorosa, baseada na cooperação, no auxílio mútuo e na busca da unidade na diversidade – temas caros a autores que pensam ecopolitica e amorosamente, como Fritjof Capra, Leonardo Boff ou Edgar Morin.
      Entendo que a Ecopolítica do Amor, como método de ação cidadã, como postura do ser humano em sua cidade e no seu planeta, encontra no início de um novo século, de um novo milênio, oportunidade histórica exponencial para ser utilizada. Isso por uma das características centrais das grandes transformações aceleradas pela queda do Muro de Berlim.
      Essa característica é, na minha opinião, a da emergência do que eu chamaria de Nanocultura. A Nanocultura é uma decorrência direta das dinâmicas e cada vez mais velozes mudanças  a que nós, espectadores privilegiados da transição de milênios estamos assistindo, nos vários campos da atividade humana.
      Nanoeletrônica é uma das palavras-chave na física e ciências em geral desses nossos tempos. Robôs em miniatura, circuitos integrados que cabem na ponta de um dedo, chips de altíssima performance em tamanho milimétrico – essa é a cara da Nanoeletrônica que está sendo produzida em laboratórios high tech em vários países. Ao mesmo tempo, as novas descobertas em biotecnologia também apontam para essa ênfase no micro do micro, e não no macro ou no gigante.
      Da mesma maneira, é cada vez mais valorizada a procura do que genericamente se chama de “vida simples”. As grandes estruturas urbanas estão cada vez mais saturadas e esgotadas. É nítida, em várias partes do mundo, uma corrente contrária ao espírito da urbanização sem limites que foi hegemônica na segunda metade do século 20. O negócio é ser pequeno, é o que querem dizer hoje grupos e faixas populacionais cada vez maiores, em uma eloqüente confirmação do que já vislumbrava, na década de 1960, Schumacher, o autor de Small is Beautifull.    
      E mais. No campo da cultura, um dos fenômenos subjacentes ao processo de globalização é a valorização acentuada do que é local, dos valores culturais próprios de uma comunidade ou de um grupo étnico e/ou social específico. Não à hegemonia cultural dessa ou daquela origem, sim à valorização da diversidade cultural, viva os valores culturais mesmo que de um grupo indígena pequeníssimo em termos populacionais, mas valiosíssimo pelo que tem de tradição e sabedoria acumulada através dos tempos.
      No campo religioso a ordem do dia é a  mesma. Enquanto se assiste a uma crise das grandes instituições religiosas tradicionais, assiste-se à proliferação de pequenas denominações.
      E mesmo na política tradicional ocorre algo semelhante. O momento é de profunda crise nas grandes estruturas partidárias tradicionais, que lutam para se manter e manter o seu poder, enquanto pequenos movimentos e pequenas siglas avançam e ganham espaços. Quem diria que aqueles verdes a quem assisti com “água na boca”  na Berlim de 1988 (como a lendária Petra Kelly ou o então ascendente Joska Fischer, agora ministro das Relações Exteriores) um dia chegariam ao poder na racionalíssima e conservadoríssima Alemanha?
      Quem diria que, no Brasil dominado há séculos pelas elites e seus partidos gigantes, seriam eleitos presidentes da República alguém de um minúsculo partido (Fernando Collor de Mello, ressalvando-se que ele teve apoio de um gigantesco aparato de mídia) ou, depois, alguém da classe operária e que ajudou a construir um partido pequeno no começo (Lula e o PT)?
      Esses são os sinais de uma nova era, a Era da Nanocultura, em que a Ecopolítica do Amor pode ser, talvez, eficiente instrumento pedagógico de ação e transformação. E o espaço em que a Ecopolítica do Amor pode agir e a Nanocultura se materializar é o município – o menor espaço político.
      Se, tradicionalmente, as grandes tensões e disputas políticas ocorreram na história visando a mudança dos poderes centrais, dos governos federais ou no máximo estaduais, as transformações mais sensíveis e consistentes que tendem a se sedimentar na Era da Nanocultura serão na esfera do poder local, dos municípios e, principalmente, das cidades. Emerge, como ocasião histórica para viabilizar essas transformações, o conceito/sonho da Agenda 21 Local.                 
      No prefácio de seu importantíssimo O Ponto de Mutação, Fritjof Capra assinalava, em abril de 1981, que vários movimentos sociais gestados nos anos 1960 e 70 – movimentos feministas, ecológicos, pacifistas e outros – ainda não haviam detectado seus pontos de conexão, no sentido da arquitetura de uma ampla e poderosa aliança. Seu livro foi pensado, então, como um instrumento a “fornecer uma estrutura conceitual coerente que ajude esses movimentos a reconhecer as características comuns de suas finalidades. Assim que isso acontecer, podemos esperar que os vários movimentos fluam juntos e formem uma poderosa força de mudança social” (Fritjof Capra, O Ponto de Mutação, Editora Cultrix, São Paulo, 1995, pág.14).
       Nas últimas duas décadas do século 20 e primeiros anos do século 21 algumas coalizões foram esboçadas, com sementes lançadas em momentos como as manifestações em Berlim, outubro de 1988. O Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi, talvez, o momento mais consistente nesse sentido, e é muito significativo que ele tenha acontecido no Brasil que, como veremos, tem sido pródigo em apontar para ações em rede, e na base das sociedades.




Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre: outro mundo é possível? Este mundo é possível? 

      Mas é essencial que, de fato, as coalizões sejam alcançadas na base da sociedade, na dimensão primária da organização social que é o local, o município. E a Agenda 21 Local pode representar, na minha opinião, importante programa para viabilizar, em esfera local, as conexões, as alianças, as coalizões, que são na prática o rompimento com o pensamento cartesiano, que separa, que divide, que impede a união.
      O objetivo desse pequeno livro é, nessa linha, formular algumas idéias acerca do potencial transformador da construção de Agendas 21 Locais, no cenário da emergência da Nanocultura e visando edificar um novo ideal civilizatório, tendo como método e instrumento a Ecopolítica do Amor.      Na prática recupero alguns conceitos que utilizei em outro livro de minha autoria, Terra Nave MãePor um socialismo ecológico (Traço a Traço Editorial e CEPE, 1991). Sob a influência das dramáticas mudanças no teatro geopolítico internacional pós-fim da Guerra Fria, e da segunda Guerra do Golfo do início da década de 1990, em Terra Nave Mãe defendi que o socialismo poderia ser reformatado, em uma perspectiva ecológica, a partir da reavaliação e incorporação de conceitos como Ecopolítica, Ecodesenvolvimento e Ecofeminismo. Foi uma das primeiras obras no Brasil a tocar em eco-socialismo – conceito ainda não muito bem debatido até este conturbado início do século 21, talvez por uma incapacidade histórica da esquerda em tratar da questão ecológica.  
       Entendo que agora, no começo de uma nova década e de um novo século e de um novo milênio, esses conceitos – e mais outros – podem novamente ser importantes na configuração das Agendas 21 Locais como programas de ação para uma nova civilização, no marco da Nanocultura e tendo como a Ecopolítica do Amor como método e instrumento revolucionário de ação.
      A consciência de que a Agenda 21 Local é oportunidade histórica para  praticar o potencial criador do ser humano foi sendo consolidada no autor não apenas em função dos aportes teóricos ou pelo contato direto, como jornalista, com momentos cruciais para a história recente da humanidade e particularmente para a Terra Brasilis - como o citado encontro de Berlim, a Consulta Justiça, Paz e Integridade da Criação (Seul, 1990), a própria Eco-92 e, no Brasil, a elaboração da nova Constituição em Brasília.
      Nos primeiros anos do novo século tive oportunidade de atuar, como coordenador, participante ou jornalista, de iniciativas – no contexto da Região Metropolitana de Campinas (RMC), interior do estado de São Paulo – relacionadas à Agenda 21 Local, que ajudaram a reiterar a crença no seu enorme potencial para ajudar a construir o novo marco civilizatório.
      Em 2001 coordenei, junto ao Projeto Correio Escola da Rede Anhangüera de Comunicação, em Campinas, um curso sobre Agenda 21 Local, direcionado aos professores de várias escolas da cidade e região. O conteúdo do curso resultou no livro Agenda 21 Municipal na Região Metropolitana de Campinas, lançado em 2002, mesmo ano de lançamento de A Década DesperdiçadaO Brasil, a Agenda 21 e a Rio+10, balanço crítico do que o Brasil cumpriu, ou não, do programa da Agenda 21 global aprovada na Eco-92 (os dois livros pela Editora Komedi). Em 2003 a “Agenda 21 Local do tamanho de Campinas” foi o tema do primeiro curso da Universidade Aberta do Meio Ambiente, projeto que passei a coordenar no Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA),  instituição criada em 1901, e cujos idealizadores já tinham a noção da necessidade de não-separação desses três campos do conhecimento humano. A partir de 2002 o autor acompanhou e/ou participou do processo de construção de Agendas 21 Locais em Sumaré, depois Campinas e, finalmente, em toda RMC.           
      A visão que em mim foi fortalecida é a de que a Agenda 21 Local é realmente transformadora, mas muito mais do que apenas na esfera do que se convencionou como ação política e/ou ecológica. A Agenda 21 Local só tem sentido, para mim, se revelar a poesia das cidades e de seus  moradores – seres humanos e demais seres vivos. A poesia que se esparrama pelas esquinas, pelas ruas e pelos dobres dos sinos que nos despertam de nossa frenética letargia, de nossa mente eletronizada, de nossa pressa letal.
      A Agenda 21 Local tem sentido se for para desnudar a carne viva das cidades, que se esconde sobe essas horrorosas mantas de asfalto e concreto. A carne viva da alma de João, de Rita, de José, de Maria, de Jéferson e de Clara.
      Que desperte e resgate e multiplique a energia contida nas favelas, nos hospitais, nas escolas, nos bancos das Igrejas e nas camas dos hospitais.      Uma Agenda 21 Local que traga a vida de volta, a vida que não se aprisiona,  não tem ciúme, não tem medo da felicidade e que é a prima irmã da liberdade.     
      A visão subversiva da vida, que teima em escancarar a beleza do avesso do avesso do avesso (Caetano, em homenagem ao querido Toninho), que celebra a diversidade mas que não aceita o que destrói e torna desigual pela injustiça.
      A vida do sorriso das crianças, na sabedoria dos velhos, nos versos e na prosa dos loucos, na maravilha do vôo dos pássaros e do desabrochar das pétalas de ipê que dão cor e aroma para as cinzas cidades de ferro e aço.
      A vida resgatada dos rios canalizados pela ignorância, pela cobiça e pela cegueira. A vida resgatada das matas ciliares que pedem um novo olhar sobre a divindade e a magnitude da vida.
      A agenda 21 como espelho da nova constelação de saberes – saberes imemoriais, seculares ou novíssimos ou prenunciadores do futuro que já chegou. Esta é a Agenda 21 Local que pode ser transformadora e anunciadora – portal – da nova civilização.
PS conceitual: Uma nova cultura, para nova civilização – a Ecocivilização – começa com a mudança de conceitos. Em sua Aula, Roland Barthes acentuava como a língua é instrumento de poder. “A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva” (Roland Barthes, Aula, Editora Cultrix, São Paulo, página 12). A língua reflete um pensamento, uma cultura entranhada na linguagem. A língua é excludente, deixa de fora o que essa cultura não aceita. “...a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Barthes, op.cit, página 14).
      É preciso cuidado com o que se fala. O que se fala já mostra um ponto de vista. Por isso neste livrinho falo em países biodiversos e não do Terceiro Mundo, pois seria admitir que os chamados ricos são o que se considera Primeiro Mundo – o Brasil tem o maior volume de água e a maior floresta tropical do planeta, e só por isso, para mim, ele poderia ser considerado  Primeiro Mundo. Falo então em países biodiversos – países, como o Brasil, ricos em recursos naturais e biodiversidade, biológica, cultural e étnica.     
      Outra coisa: vou falar muito em civilização, ou sociedade, ou ordem, tecnocrática, que para mim caracteriza melhor a moderna sociedade ocidental. Uma sociedade sujeita ao paradigma excessiva cientificista e tecnocrático, e por isso mesmo de algum modo autoritária politicamente, excludente socialmente e destruidora ecologicamente.
      E uma sugestão, de novo citando Barthes, para se sair das armadilhas da língua. “... a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura” (Barthes, op.cit, página 16). A boa literatura – ela diz mais e melhor do que mil ensaios políticos ou sociológicos ou...

Campinas, 25 de setembro de 2004, Ano 15 CR

CAPÍTULO I

CRISE GLOBAL, DA CIÊNCIA E DAS CIDADES

      Como tantas outras palavras desgastadas e canibalizadas pelo império avassalador da mídia, crise se tornou sinônimo de algo geralmente ruim, sinal de decadência e prenúncio da morte. Pode ser, mas o significado original de crise em grego, não podemos nos esquecer, é a de oportunidade de mudanças. A crise global da transição de séculos e milênios a que estamos presenciando é uma dessas raríssimas e riquíssimas oportunidades de mudança na biografia do planeta Terra e da humanidade.
      Raras vezes na história a comunidade humana teve tanta oportunidade de mudança como agora. Períodos mais largos como o do florescimento da filosofia e do pensamento crítico e racional na Grécia antiga e o Renascimento, e em escala menor a Revolução Francesa e os conturbados anos 60 do século 20 foram alguns desses momentos cruciais, nevrálgicos, que modificaram para sempre gestos, comportamentos e formas de pensar da humanidade – ou ao menos no espaço do Ocidente.
      Pois a atual crise é de magnitude semelhante ou, em alguns aspectos, superior, ao atingir a escala planetária e todas dimensões da ação humana e fluxos vitais da biosfera. Não apenas sociedades, mas também o entorno, o meio ambiente, o meio biótico, estão passando por mutações inéditas e muito, muito perigosas. Somente o potencial da engenharia genética, que fornece ao ser humano os mecanismos para construir uma natureza – a pós-natureza – à sua imagem e semelhança dá uma idéia do que estamos dizendo.
      E se à primeira vista as tendências podem parecer assustadoras, agravando o nihilismo e a desesperança muito típicas da passagem sobretudo de milênios, a atual crise global também implica em claras oportunidades positivas de construção de algo novo, de uma civilização nova, de respeito integral entre os seres humanos e entre eles e a natureza. Uma civilização amorosa, com certeza.
      É nessa perspectiva, de que algo bom possa sair da neobarbárie do início do século 21, que, creio, devemos encarar a atual crise e seus múltiplos desdobramentos. E nem precisaremos nos alongar no diagnóstico dessa crise, o que já foi feito, com enorme propriedade e sofisticação, por muitos pensadores – como os já citados Capra e Morin, e também, de modo muito precoce e profético, pelos integrantes da Escola de Frankfurt (Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Walter Benjamin etc), ou os teólogos da libertação (os irmãos Boff, Hugo Assmann etc), ou os novos críticos da globalização, como James Petras,  Edward Said ou Ignácio Ramonet. 
      De qualquer forma, é construtivo enumerar alguns indicadores dessa crise global e sistêmica, pois é sobre eles que pode atuar, de modo eficaz e plural, a Ecopolítica do Amor, no sentido da construção de Ecocidades como espelhos de uma nova civilização, a partir do programa das Agendas 21 Locais.

INDICADORES DA CRISE GLOBAL

      Alguns fatos e números, muitos deles conhecidos do leitor, são suficientes para assinalar o caráter global e sistêmico da atual crise planetária e civilizatória:
·       A injustiça no fluxo e consumo de recursos entre Norte e Sul – Mais de 90% das informações difundidas pela mídia ao Sul do Equador são produzidas pelas agências e corporações sediadas nos Estados Unidos e Europa. Um cidadão médio dos Estados Unidos consome 22 vezes mais energia do que um brasileiro e 360 vezes mais do que um cidadão de vários países da África. Uma grande corporação transnacional movimenta, no início do século 21, valores equivalentes ao de vários países africanos.
·       Protecionismo dos ricos prejudica os pobres – Os países em desenvolvimento perdem cerca de US$ 100 bilhões por ano, por causa do protecionismo praticado pelos países ricos (segundo o estudo Globalização, crescimento e pobreza – A visão do Banco Mundial sobre os efeitos da globalização, do Banco Mundial, Editora Futura, São Paulo, 2003, pág.25).
·       Ajuda oficial ao desenvolvimento em queda acentuada – Nas últimas décadas do século 20 foi intensificada a campanha pela destinação de 0,7% do PIB dos países ricos para programas de ajuda aos países em desenvolvimento. A meta foi reiterada na Agenda 21 aprovada na Eco-92. Entretanto, a média de Assistência Oficial para o Desenvolvimento apenas caiu, de 0,35% em 1986, para 0,22% no início do século 21, segundo o Banco Mundial. Na Alemanha, a destinação oficial era de 0,48% do PIB no início da década de 1980, caindo para 0,27% duas décadas depois. Países escandinavos e Holanda lideram o ranking de destinação.
·       Migração ilegal aumenta – Após a queda do Muro de Berlim, a migração ilegal aumentou em escala crescente para a União Européia, de cerca de 50 mil pessoas em 1993 para 500 mil em 1999, segundo o Centro Internacional para o Desenvolvimento das Políticas Migratórias. O comércio da migração ilegal é estimado em cerca de US$ 10 a US$ 12 bilhões/ano (Banco Mundial, op.cit, pág.114).
·       Terrorismo globalizado agrava pobreza – O terrorismo também foi globalizado. E o incremento do terrorismo pode intensificar o processo de pauperização. O Banco Mundial calcula que, em função dos ataques terroristas a 11 de setembro de 2001, cerca de 10 milhões de pessoas foram adicionadas ao contingente vivendo em situação de pobreza no mundo (Banco Mundial, op.cit, pág.172).
·       Corrida armamentista volta a crescer – Um dos efeitos positivos da queda do Muro de Berlim havia sido a atenuação da corrida armamentista global. Os gastos militares globais declinaram de US$ 762 bilhões em 1993 para US$ 690 bilhões em 1998, nos cálculos do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Os atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington, detonaram a retomada da corrida armamentista. Os gastos militares atingiram  US$ 741 bilhões em 2001 e US$ 784 bilhões em 2002. A Agenda 21 previa a necessidade de investimento de US$ 600 bilhões por ano para equacionar todos os desafios sócio-ambientais globais em pouco mais de uma década. Apenas com o dinheiro gasto em armas isso seria possível.
  • Nunca houve tantos pobres -  No início do século 21 cerca de 2,8 bilhões de pessoas ganham menos de 2 dólares por dia, e 2,4 bilhões – ou cerca de 30% da população mundial – não têm saneamento básico adequado. A ONU estima que metade da população mundial, ou 4 bilhões de pessoas, poderão sofrer com a falta de saneamento básico em meados do século 21.
  • Velocidade inédita no consumo de recursos naturais - Um europeu consome hoje 60 vezes mais energia do que alguém da era dos caçadores/coletores.
·       Países ricos são os grandes poluidores globais – Os Estados Unidos, sozinhos, são responsáveis pela emissão de 25% dos gases-estufa, tendo 4% da população mundial. Por causa disso, e dos impactos para sua economia com a tomada de medidas de prevenção à emissão de gases atmosféricos, os EUA têm-se recusado a ratificar o Protocolo de Kyoto, de 1997.
·       Situação dramática nos recursos hídricos -  Em 2003 foi publicado o Informe Mundial sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, fruto de trabalho de 23 agências e secretarias das Nações Unidas. O Informe acentuou que, na pior das hipóteses, 7 bilhões de pessoas, correspondendo a 80% da população mundial, em 60 países, sofrerão com a falta de água ou com problemas de saneamento até 2050, quando o mundo terá 8 bilhões de pessoas. Isso se não forem tomadas medidas urgentes, urgentíssimas – no início do século 21 são 2 bilhões de pessoas, 30% da população global, com falta de água ou saneamento, o que provoca a morte de 6 mil pessoas por dia, uma tragédia colossal, que não aparece na mídia. O volume de reservas mundiais cai a cada dia, no contexto da civilização tecnocrática, de 16.800 metros cúbicos por pessoa/ano em 1950 para 7.300 m3 por pessoa/ano no final do século 20, com projeção de alcançar 4.800 m3 /habitante/ano em 2020, se as citadas medidas não forem tomadas – medidas como uso mais racional da água, reuso, combate a perdas, tratamento amplo de esgotos domésticos e industriais, recomposição de matas nativas e combate a todas outras formas de poluição. A escassez de recursos hídricos tem-se tornado motor para importantes conflitos – o Informe Mundial revelou que desde a década de 1950 foram registrados 507 conflitos internacionais envolvendo água, sendo 37 resultando em ações violentas, 21 delas com operações militares. É a guerra pela água, que se avizinha no horizonte, como uma das grandes ameaças do século 21.


Rio Xingu, em Altamira (PA): maior reserva de água doce do mundo praticamente não tem esgoto coletado e tratado


      Os desafios suscitados por essa crise global e ecossistêmica devem ser encarados exatamente nessa perspectiva. É uma crise múltipla, e portanto merece uma abordagem múltipla, multi e pluridisciplinar. Mas essa reflexão plural apenas será possibilitada por uma nova visão da Ciência e da Tecnologia, cuja configuração e evolução desde o final do século 19 têm sido, para muitos autores, um dos fatores centrais da grande onda que levou à crise global de que estamos tratando. E qual o caráter, então, dessa outra crise, a da Ciência e da Tecnologia?

A CRISE DO PENSAMENTO CIENTÍFICO

      O aparato científico e tecnológico é a grande referência da civilização tecnocrática, que evolui ao longo de largo período histórico, para se sedimentar no século 20. A gênese da civilização tecnocrática pode ser  situada na Grécia dos séculos 5 e 4 Antes de Cristo, quando o Logos, a palavra mediada pela razão, se expressa como conquista do avanço da humanidade.
      No Renascimento a razão recebe um novo impulso, quando o mundo se torna cada vez mais a semelhança do homem – não da humanidade, mas do homem mesmo, sexo masculino, reforçando o Antropocentrismo que o Cristianismo ajudou a se tornar dominante.
      Nasce o método científico, a partir das idéias de Galileu Galilei (1564-1642) e de Kepler (1571-1630). Era o momento das grandes navegações, do contato do europeu com o desconhecido. Nem é preciso lembrar que, por suas idéias, que contrariavam o saber consagrado pela tradição religiosa católica, Galileu foi condenado pela Inquisição – principalmente por ter defendido que o Sol, e não a Terra, era o centro do universo.


Florença, território por excelência do humanismo, que colocou em xeque o Cristianismo tradicional

     Foi um dos dois grandes golpes no Cristianismo, segundo o missionário irlandês Sean McDonagh, que viveu muitos anos nas Filipinas. Em seu livro To Care for the Earth: a Call to a New Teology, de 1966, McDonagh assinala que os dois outros golpes no Cristianismo foram a Peste Negra, que devastou a Europa entre 1347 e 1349 (sendo explicada pelos sacerdotes como uma punição divina, o que reiterava a idéia de um Deus opressor), e as idéias de Charles Darwin (1809-82), com sua Teoria da Evolução.      
      Depois veio a Era das Luzes, do Iluminismo, típico do cartesianismo, o pensamento científico se consolida – entre os séculos 18 e 19 Depois de Cristo, como o grande paradigma da nova civilização tecnocrática.
      Fundamental acentuar que não foram poucas as vozes que ao longo dos séculos têm alertado para os riscos do paradigma científico. Paradoxalmente, foi um dos maiores nomes do humanismo renascentista, Erasmo de Rotterdam, quem elaborou uma das grandes peças de acusação contra a arrogância humana de querer saber tudo e, com isso, tudo poder.
     Padre Erasmo foi um ácido crítico do poder eclesiástico, e compartilhava das idéias humanistas dos séculos 15 e 16. Não se privou, contudo, de ridicularizar a aura divina de que os sábios, filósofos e sacerdotes se revestiam através dos tempos. Em 1509 Erasmo vai à Inglaterra, hospedando-se na casa de Thomas Morus, futuro autor de A Utopia, de 1516.
      Na casa de Morus é redigido por Erasmo o Elogio da Loucura,  no qual ironiza a aura divina auto atribuída pelos sábios da época. Ele não perdoa, com humor, a pose de seriedade dos grandes sábios da humanidade:
      “Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou conservará um profundo silêncio ou interromperá os demais convidados com frívolas e inoportunas perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a agilidade de um camelo. Levai-o a um espetáculo, e bastará o seu aspecto para impedir que o povo se divirta”(Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura, in Erasmo, coleção “Os Pensadores”, Editora Abril-Nova Cultural, várias edições).
      E mais, em crítica clara à civilização tecnocrática que se esboçava:      “Digamos, pois, francamente, que a ciência e a indústria se introduziram no mundo com todas as outras pestes da vida humana, tendo sido inventadas pelos mesmos espíritos que deram origem a todos os males, isto é, pelos demônios, que por sinal tiraram da ciência o seu nome” (Erasmo de Rotterdam, op.cit.).
     E prossegue, no libelo de acusação da visão antropocêntrica:  “Nada disso se conhecia no século de ouro, em que, sem método, sem regra, sem instrução, os homens viviam felizes, guiados pela natureza e pelo próprio instinto” (Erasmo de Rotterdam, op.cit.).
      E mais, em discurso muito avançado para sua época, à luz da atual crítica ao paradigma científico e tecnológico:  “Afirmo que os que se aplicam ao estudo das ciências estão muito longe da felicidade e são duplamente loucos, porque, esquecendo-se de sua condição natural e querendo viver como outros tantos deuses, fazem à natureza, com as máquinas de arte, uma guerra de gigantes” (Erasmo de Rotterdam, op.cit.).
      Mas o ideal renascentista, do qual Erasmo foi ao mesmo tempo contribuinte e crítico, foi revigorado com a Dupla Revolução, a Francesa e a Industrial. E no final do século 19 outra voz se levantava contra o racionalismo excessivo, a de Nietzche, que detectou o início da decadência do Ocidente quando abriu mão dos mitos mais caros à consciência – e alma – da humanidade, em favor da lógica, da dialética, da explicação para tudo.
      Para Nietzche, isso ocorreu a partir de Sócrates e, concomitantemente,do desaparecimento do coro da tragédia grega – o coro, para Nietzche, seria a celebração da vida, apesar dos momentos trágicos para a humanidade. A eliminação do coro, na visão do filósofo alemão, correspondeu ao momento em que o homem passou a querer dominar as forças da natureza e, assim, controlar o seu destino.
      A tese de Nietzche foi aprimorada por Max Horkheimer e Theodor Adorno, dois expoentes da Escola de Frankfurt, em Conceito de Iluminismo, texto de 1947 – dois depois, portanto, da Segunda Guerra Mundial, em que o paradigma científico/tecnológico foi fonte de poder, morte e horror, com as mortes programadas cientificamente.
      Os autores assim definiram o Iluminismo, filho dileto da visão antropocêntrica de Sócrates e outros fundadores do Ocidente, reforçada pelo Cristianismo: “O programa do Iluminismo era o de livrar o mundo do feitiço” (Max Horkheimer e Theodor Adorno, Conceito de Iluminismo, in Benjamin, Habermas, Horkheimer e Adorno,coleção “Os Pensadores”, Editora Abril-Nova Cultural, várias edições).
      Até a Idade Média, quando floresceu o Renascentismo, a natureza era temida como manifestação da onipotência – ora dos deuses, ora dos demônios. Para dominar a natureza e livrar o homem do peso do feitiço, era preciso conhecer as relações de causa/efeito, era preciso desmistificar. “O desenfeitiçamento do mundo é a erradicação do animismo”, afirmam Adorno e Horkheimer”(Max Horkheimer e Adorno, op.cit.).
      Conhecidas as causas dos fenômenos naturais, a própria natureza e suas estruturas ‘‘opressivas”  para o ser humano podiam ser dominadas, manipuladas. Esse elemento nuclear do Iluminismo funcionaria como pedra de toque para a estruturação da ordem tecnocrática/mercadológica – dominada, a natureza poderia ser transformada em mercadoria.
      Mas por que a Ciência, símbolo importante da aventura cultural humana, é caracterizada por muitos pensadores como grande incentivadora, ou motora mesmo, da crise global? São sete razões centrais, apontadas por vários nomes do pensamento moderno e contemporâneo:
(1)    O produtivismo – As relações sociais e com a natureza, na ordem tecnocrática, estão orientadas para o processo produtivo – seu corolário, o consumo. Esse conjunto de relações é fundado no racionalismo estrito. Tudo o que colabora para o processo produtivo é racional. As expressões humanas, sociais ou naturais que destoam das orientações funcionais, produtivistas, são irracionais, improdutivas. Por este prisma, as relações humanas e com a natureza tomam prioridades invertidas. Para a ordem tecnocrática, é racional depredar o meio ambiente para a obtenção do lucro. Ao mesmo tempo, é irracional defender uma forma de desenvolvimento que respeite o equilíbrio ambiental. Do mesmo modo, é “racional, explicável”, que centenas de milhões de pessoas sofram com a miséria, a desnutrição – afinal, muitas destas pessoas “não gostam de trabalhar, só querem moleza”. Também é racional que milhões de pessoas gastem de 3 a 4 horas de seus dias no transporte da casa para o trabalho e vice-versa.  O caráter impessoal, asséptico, da ordem tecno-industrial, foi denunciado com todas as cores na obra de Kafka, em especial em O Processo e A Metamorfose.
(2)    O novo conceito de tempo -  O pensamento tecnocrático operou uma mudança significativa no conceito de tempo. E talvez pior: com o enraizamento da sociedade tecnocrática, as pessoas humanas passaram a se preocupar com o tempo, como  que farão amanhã ou no futuro. As sociedades primitivas, nota Octávio Paz, em Os Filhos do Barro, viviam do passado, recuperando nos ritos a aurora da criação (1). Já o Cristianismo escolheu a eternidade como o tempo perfeito. A partir do Renascimento, o tempo ideal é o futuro –toda a sociedade moderna foi erguida em função de promessas, os prazeres de hoje foram adiados para o amanhã. Na ordem tecnocrática, o tempo passou a ser medido como qualquer outro fenômeno físico ou químico ou biológico. Não por coincidência, os instrumentos de se medir o tempo foram aprimorados no bojo do processo de estabelecimento da sociedade tecnocrática. A agulha de minutos foi inventada apenas no final do século 17, e a de segundos apareceu somente no século 18, no contexto de florescimento da Dupla Revolução, a Industrial e a Francesa. Vale lembrar que a idéia de medir o tempo se consolida com a contribuição do Cristianismo – com o badalar dos sinos da rede de monastérios que se espalha pelo território europeu. Em outras palavras, o tempo foi transformado na ordem tecnocrática em mais uma mercadoria. “Tempo é dinheiro” – este é um dos slogans mais conhecidos  da civilização tecnocrática, muito associado à idéia de produtivismo.
(3) A desespiritualização -  O excessivo racionalismo científico contribuiu para a desespiritualização da vida, para o desencantamento do mundo. “El universo que nos rodea es el universo de los colores, sonidos y olores; todo eso desaparece frente a los aparatos Del científico, como una formidable fantasmagoria” (Ernesto Sabato, Uno y el Universo, 1945, in Obra Completa, Editora Espasa Calpe Argentina/Seix Barral, Buenos Aires, 1995, página 29). O humanismo renascentista foi um dos grandes momentos da luta humana pela liberdade – luta própria da condição humana. Até aquele momento, as instituições religiosas estiveram ao lado dos poderes que massacravam os seres humanos. A Reforma Protestante, nascida no ventre do humanismo renascentista, foi um duro golpe no poder da Igreja Católica, muito embora o protestantismo tenha contribuído para o estabelecimento do capitalismo. Depois, a utilização da “vontade divina” como fonte de poder foi definitivamente fulminada na ordem industrial-tecnológica, embora muitos governantes ainda falem em nome de Deus quanto cometem seus assassinatos, pequenos ou de massa. “Deus está morto”, sentenciou Dostoievsky. Com a morte de Deus, o homem moderno rompeu um de seus vínculos primários de que fala Erich Fromm –o vínculo com a Igreja, a quem o homem medieval aderira para resolver seu processo de individuação, de separação da mãe – antes ele estava ligado diretamente à Mãe Terra, à natureza. O homem moderno tornou-se livre da idéia de ‘deus” que tanto o oprimia. No entanto, para equacionar a tendência de retorno aos vínculos primários, aderiu à estrutura opressiva da ordem tecnocrática. Ele aceitou integrar o conjunto funcional, “racional”. Os valores espirituais são condenados pela ordem tecnocrática – e até o Cristianismo foi vítima, apesar de ter contribuído, com o Antropocentrismo, para fortalecer essa mesma ordem. Esse processo foi sentido até no campo da cultura clássica, que perdeu, na sociedade tecnocrática, o seu poder de crítica, de contestação, como acentuou Walter Benjamin em A Obra de Arte na Época de sua Reprodutividade Técnica – ele acentua como a sociedade de massas e seu aparato científico e tecnológico permitiu a “democratização” de produtos originalmente consumidos somente pela elite, mas tais produtos perderam o potencial crítico.
(4) A separação, a fragmentação da vida – Penso, logo existo. O pensamento é a condição da existência, segundo Descartes. O cartesianismo foi o grande salto para o reforço do paradigma científico, e uma de suas características é a separação, a fragmentação da vida. Cada substância, cada espécie, cada fenômeno  - tudo deve ser dividido para ser compreendido.  “... el análisis científico es deprimente: como los hombres que ingresan en una penitenciaría, las sensaciones se convierten en números. El verde de aquellos árboles que el aire menea ocupa uma zona Del espectro alredor de las 5000 unidades Angström; el manso ruído es captado por micrófonos y descompuesto en un conjunto de ondas caracterizadas cada una por un número; en cuanto al olvido del oro y del cetro, queda fuera de la jurisdicción del científico, porque no es susceptible de convertirse en matemática” (Ernesto Sabato, op.cit., página 29). O século 20, com a separação do átomo, gerando o grande monstro da energia nuclear, consagrou essa visão. Mas as pessoas, o mar, as flores, os animais, a terra são muito mais do que apenas conjunto de átomos de moléculas a serem conhecidos, dominados e transformados em mercadoria. Teilhard de Chardin, o padre francês marginalizado por sua posições consideradas heréticas, defendia a tese de que também as “coisas”, a matéria inanimada, detêm de modo latente, em seu interior, um “espírito” – em suma, são portadores de vida. Para Chardin, não importa o tamanho do corpo. Todos os corpos apresentam uma complexidade em sua estrutura e, quanto mais complexo, maior o grau de sua interiorização, a sua “espiritualidade”. Assim, um simples micróbio teria um “espírito” maior do que um cometa, pois “sua complexidade faz dele um ser orgânico e sua interioridade se manifesta numa capacidade original de se alimentar, crescer e reproduzir-se”, no comentário de José Luiz Archanjo, em Teilhard de ChardinMundo, Homem e Deus (José Luiz Archanjo – org. -, Teilhard de Chardin, Mundo, Homem e Deus, Editora Cultrix, São Paulo, 1980). Em suma, a vida não pode ser aprisionada em números, equações químicas ou operações de computador. E nenhum ser vivo está acima de outro – todos são importantes na grande teia da vida. A separação, o isolamento, o individualismo foram facilitados pelo paradigma  científico cartesiano. E não só de átomos ou moléculas – mas dos seres humanos entre si e entre eles e a natureza.
(5) Cultura versus natura – Um dos efeitos do paradigma excessivamente científico foi a separação da cultura da natura, da natureza, que deve ser esquadrinhada, conhecida para ser dominada e transformada em mercadoria. Cultura seria, nessa visão, basicamente a reunião dos saberes científicos. As culturas “pré-científicas”, por exemplo as indígenas, seriam assim “menores”, “pré-históricas”. Mas qual seria a sociedade mais culta, a indígena, identificada com os fluxos da natureza, e por isso mais reverente com relação à vida, ou a sociedade tecnocrática, que destrói a natureza, a vida toda com sua lógica produtivista, racionalista ao extremo e consumista?
(6) Relativismo cultural – De um modo interligado, o paradigma científico e tecnológico, da forma como foi endeusado na sociedade tecnocrática, consolidou uma cultura como a dominante, excludente – a cultura de matriz européia e, no início do século 21, mais norteamericana do que tudo. É a cultura WASP – White, anglo-saxon e protestant – levada ao extremo. O inglês é o idioma a ser aprendido, imitado, assimilado. Os saberes nativos, típicos do povo, de qualquer povo, são excluídos. O que importa é o discurso racional, verticalizado, derivado das universidades.
(7) A política autoritária - A separação entre saber científico e popular é apropriada pela chamada classe política, que se autoproclama a única que pode efetivamente fazer política. Os políticos profissionais utilizam ingredientes do discurso científico para fazer valer a sua exclusividade, a sua reserva de mercado. O “falar bonito” de muitos políticos profissionais está associado a essa idéia. Alguns deles até inventam palavras, expressões ou modos próprios e peculiares de falar. Afinal, eles são os donos da palavra – política se faz essencialmente com palavras.

      As conseqüências ecológicas, políticas, sociais e culturais do cartesianismo excessivo são claras. Não se trata, óbvio, de repudiar tudo o que se refere à Ciência. A própria Ciência é responsável pelo maior conhecimento dos impactos negativos da ordem tecnocrática. O aquecimento global tornou-se um dos temas mais contundentes da agenda ecológica por causa das informações coletadas e difundidas por cientistas. E mais: a Ciência tem sido responsável por importantíssimas conquistas da humanidade, nos mais diversos ramos, da Medicina à Agricultura, das Comunicações à Economia.
      O que se critica é tornar o excessivo cientificismo como o paradigma único, e que seria neutro, quando na prática ele tem sido tudo menos neutro. Nesse sentido, é fundamental uma crítica consistente do paradigma cientificista, mas desde que não se revele totalmente irracional – o que seria outra forma de obscurantismo, usado às vezes por ditadores vários.
      Uma das mais contundentes críticas à sociedade tecnocrática foi pronunciada por Ernesto Sabato, o escritor argentino que, antes, foi cientista – trabalhou no legendário  Laboratório Curie, de Paris.
      Sabato, que fala da Civilização Tecnolátrica, aquela que idolatra a tecnologia, critica o que chama de fetichização da ciência: “... los siglos XVIII y XIX desencadenaron uma espécie particularmente peligrosa de dogmatismo: el científico” (Ernesto Sabato, op.cit. página 37).


Sociedade global interconectada: avanços da comunicação ajudam a
fragmentar ou a uma visão holística da realidade? 

      O escritor argentino, famoso por ter presidido a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que apurou os crimes da ditadura militar em seu país, continua, ao lamentar como o cientificismo se tornou o paradigma da Civilização Tecnolátrica: “Era um acontecimiento previsible: la ciencia se ha hecho crecientemente poderosa y abstracta, es decir, misteriosa: para el ciudadano se ha convertido em uma espécie de magia, que respeta tanto más cuanto menos la comprende. Este nuevo esoterismo tiene por dignidades el Miedo y el Poder, y estas dos fuerzas engendran siempre las supersticiones” (Sabato, op.cit, página 38).
      A questão, enfim, não é negar a Ciência e a Tecnología, mas criticar a sua eleição como o paradigma único de mediação do real, de referência exclusiva para a produção, a cultura, a percepção espiritual e da natureza. Em resumo, torná-las, como diz Sabato, novos fetiches, novos mitos e superstições, exatamente o que o discurso científico e tecnológico diz combater.           
      E o espaço onde a crise do paradigma científico é mais evidente é o espaço local, as cidades. Elas se tornam campo privilegiado de reflexão sobre os impactos do paradigma cientificista e para a prática de nova abordagem.

A CRISE DAS CIDADES

      Metade da população mundial já mora nas cidades no início do século 21. É uma tendência clara a urbanização, projetando a multiplicação de desafios e riscos nos campos social, político, ecológico e econômico.       Mas por que o medo  da cidade grande, da metrópole, da megalópole, se as cidades, historicamente, são símbolos da libertação das estruturas tradicionalmente opressoras das oligarquias rurais através dos tempos, além de espaços de produção e troca cultural por excelência?      Ocorre que as cidades, no cenário da sociedade tecnocrática, consolidadas no século 21, adquiriram todos os aspectos negativos inerentes a essa sociedade, apesar dos esforços de arquitetos e urbanistas por tornar as cidades modernas mais agradáveis, de interação entre ser humano e meio ambiente, espaços de convivência dignos e solidários e não-violentos.      O que prevaleceu, porém, foi a cidade funcional, típica do produtivismo e fragmentação do cartesianismo. É a cidade dividida em zonas, cada uma destinada a um objetivo – a zona industrial,comercial, universitária e assim por diante. Uma das conseqüências é o enorme tempo que precisa ser percorrido entre a casa e o trabalho, o que significa perda de tempo e poluição atmosférica, por exemplo.
      A cidade funcional também está subdividida em guetos, dos quais a proliferação de condomínios é o signo máximo, no início do século 21 – são as novas muralhas, típicas da cidade medieval. É a consagração da separação, do isolamento, e não da cidade como espaço privilegiado de diálogo, troca intercultural e festa.      O predomínio do urbano sobre o rural, e da submissão dos recursos naturais às demandas de crescimento da cidade, é outro efeito deletério da urbanização típica da sociedade tecnocrática, consagrada no século 20. É a separação da cultura da natura, da submissão do espaço e dos recursos naturais à lógica produtivista, materialista e consumista.      Poluição, estresse, violência, pressa – estes são alguns dos sintomas básicos da cidade em crise do início do século 21, refletindo a crise global e espelhando a crise do paradigma científico e tecnológico in extremis. A pressa, o tempo é dinheiro, típicos da cidade grande, da metrópole, é a condenação da crítica – refletir sobre o que se faz se tornou um luxo. Tudo é feito de modo mecânico.

La Defense, em Paris: a metrópole humaniza ou mecaniza a vida?

      Os valores se inverteram. O que é natural não tem valor, o importante é o artificial. As árvores são incômodos, o importante é o asfalto, o concreto. Os rios foram sepultados, o morador da cidade perdeu o direito ao contato direto com a natureza. A desvalorização da vida é fatal, a violência o seu corolário.      Neste cenário proliferam os grandes planos, tradicionalmente concebidos pelos especialistas, pelos iluminados, pagos pelos políticos profissionais tornados governantes. São planos sem a riqueza do saber popular, trazem em si, embutidos, os valores do paradigma excessivamente cientificista.
      É nesse âmbito que as Agendas 21 Locais se transformam em instrumentos de planejamento participativo, pressupondo um grande pacto comunitário porque elaborado pela própria comunidade, apontando para a superação ou o enfrentamento dos desafios inerentes à crise das cidades, como reflexo da crise global e do paradigma científico e tecnológico.      As Agendas 21 Locais podem indicar um momento novo, de ligação entre o que está separado, de aproximação da cultura da natura, de protagonismo comunitário, de reapropriação do território como direito de todos, da vida toda, de seres humanos, dos animais, da flora e da biosfera como um todo.
      Mas para que isso aconteça, para que as Agendas 21 Locais se consolidem como esse mecanismo de transformação, no contexto da emergência da Nanocultura, são fundamentais as mudanças de paradigmas culturais muito fortes, o que pode ser exercitado pelo exercício do que eu chamaria de quatro pilares da nova cidade, a Ecocidade: a Ecopolítica, o Ecofeminismo, o Ecodesenvolvimento e o Ecopacifismo. Temas dos próximos capítulos.


CAPÍTULO II

ECOPOLÍTICA: A POLÍTICA COM AMOR


      Uma civilização ecológica – eco-socialista? –, no marco da Nanocultura, deve  ser o primado da cidadania e da participação política. Nas duas últimas décadas do século 20 e primeiros anos do século 21 o mundo passou por um período de enorme insatisfação com os rumos da política. Denúncias freqüentes de envolvimentos de políticos em corrupção e a própria estratégia de manutenção do poder orientaram a opinião pública no sentido de repudiar a ação política como algo sujo, indigno do ser humano.
      Aos olhos do cidadão médio, a classe política em geral passou a ser vista toda ela como corruptível. “É tudo a mesma coisa”, diz o senso comum, referindo-se aos membros da classe política.Mas se se deseja a construção de novo ideal civilizatório, a partir das Agendas 21 Locais como programas de participação coletiva na definição dos rumos de suas cidades, as futuras Ecocidades, é essencial o resgate do sentido nobre da política como arte de busca do bem comum. Via Ecopolítica do Amor.
      

ECOPOLÍTICA: CONTRA A CENTRALIZAÇÃO


      Na sociedade eco-socialista, a partir das Ecocidades, a atividade política deve estar determinada pelo signo da descentralização. Ecopolítica do Amor: cada um deve se sentir responsável pelo todo, a partir do momento em que sente ser possível influir nas decisões que afetam diretamente as suas vidas. A política de descentralização contradiz o conceito de política tradicional, e que tem orientado a ação dos governos através dos tempos, em especial após a Revolução Francesa e a formação dos Estados-Nação.
      Uma rápida pincelada sobre a visão da atividade política no curso da história ocidental é suficiente para confirmar o caráter centralista da ordem tecnocrática. O governo ideal na mente dos sábios gregos era exercido por uma minoria. Platão imaginava o governo ideal praticado pelos filósofos. Aristóteles procurou democratizar o conceito, ao assinalar que o homem é por natureza um “animal político”, na medida em que faz parte necessariamente de uma sociedade determinada.
      Ainda assim, Aristóteles não ampliou muito o direito à atividade política, pois até admitia a existência da escravidão em certos casos. A mulher, para Aristóteles, não estava igualmente destinada à política, devendo limitar seu raio de ação à esfera doméstica.
      A ação política como reserva de mercado de uma minoria continuou no Império Romano e na Idade Média, quando os reis foram investidos, pela Igreja, de um “poder divino” para governar. O poder divino dos reis começou a ser questionado no Renascimento, e um dos expoentes renascentistas – para muitos o pai da ciência política moderna – foi Nicolau Maquiavel.
      Para Maquiavel, o homem podia ter o destino em suas mãos, não era uma pessoa impotente nas mãos de Deus. Mas o conceito maquiavélico de política como atividade humana não foi estendido a todos os seres humanos – era o Príncipe que deveria orientar a atividade política. E, em política, para Maquiavel, os fins justificam os meios – em nome do “bem estar” do ser humano, atos desumanos poderiam e deveriam ser aplicados ao bel prazer do Príncipe. Não estaria nessa visão –muito aplicada através dos tempos pelos diversos formatos de Príncipe – a origem a origem da decadência e do descrédito do sentido da política como algo nobre, se exercido em nome de todos, e de modo ético e responsável?
      A Igreja não poderia passar incólume pelo Renascimento, e a Reforma protestante não tardou, liderada por Martim Lutero e João Calvino. Contudo, se a Reforma significou o questionamento do poder do papa, da hierarquia, não representou, em termos práticos, o questionamento do poder dos príncipes – muitos soberanos acabaram aderindo à Reforma, quando sentiram que os seus líderes não estavam questionando radicalmente o status quo.
      Ainda assim, sob a ressonância do Renascimento e da Reforma, o raio da ação política foi se expandindo, embora os donos do poder tenham sempre encontrado fórmulas para limita-la a um grupo reduzido. A tendência de concentração/expansão continuou no Iluminismo  e na fase das transformações mundiais processadas pela Dupla Revolução – a Revolução Industrial e a Revolução Francesa.
     

REVOLUÇÃO FRANCESA E MODERNIDADE


      Na Revolução Francesa, o conceito de cidadania recebeu um impulso expressivo. O homem e a mulher comuns tornaram-se agentes políticos de direito. Porém, novamente o poder se recompôs, e adequou o conceito de política e governo à aurora da nova ordem mundial – a ordem tecno-industrial.
      Com efeito, a Revolução Francesa criou o conceito moderno de Estado, que resultou em uma concentração ainda maior de poderes. Depois evoluiu o conceito de democracia eleitoral, a única forma legitimada de ação política. A política se reduz à ida do cidadão à urna, onde deposita o voto neste ou naquele candidato. É só. Claro que mesmo a democracia eleitoral demorou décadas para se firmar – só votavam inicialmente os proprietários, o direito de voto das mulheres data do princípio do século 20, analfabetos tiveram o direito de voto assegurado – por exemplo no Brasil – somente na década de 1980.
      A política na Era da Idade Mídia, transição dos séculos 20 e 21, foi orientada cada vez mais para a hegemonia da mídia eletrônica, notadamente da televisão. A época dos grandes comícios, que decidiam uma eleição, acabou – os comícios viraram showmícios, nos quais os candidatos pouco falam, quem se expressa é o cantor ou grupo do dia. Os novos líderes políticos vão para o estúdio da TV, se maquiam e respondem algumas perguntas de jornalistas ou representantes “do povo”.
      O resgate da atividade política para edificação de uma nova cultura, com base nas Ecocidades, tem esse enorme desafio midiático pela frente. De qualquer modo a nova forma de fazer política, a Ecopolítica amorosa, tem necessariamente a marca da descentralização.                   
        

A LUTA PELA DESCENTRALIZAÇÃO


      A luta pela ampliação da atividade política, contra a centralização, é antiga, e pode fornecer subsídios à construção da Ecopolítica. E talvez o caminho seja o de retorno às origens da humanidade. As sociedades primitivas eram descentralizadas, como lembrou George Woodcock, em artigo de 1972: Reflexões sobre a descentralização. Foi apenas quando o homem colocou a mão sobre a natureza, estabelecendo a atividade agrícola, que começou a haver a centralização. Nascia o princípio da propriedade privada e do patriarcado, contra o matriarcado reinante em várias sociedades primitivas – as sociedades em que a Deusa Mãe era predominante.
      Woodcock assinala no artigo que são poucas as sociedades descentralizadas remanescentes, embora advirta que, em sua opinião, elas podem estar perto do fim: os esquimós do Norte do Canadá, os indígenas australianos, nativos das regiões centrais de Papua-Nova Guiné. Alguns grupos indígenas brasileiros podem ser enquadrados nessa esfera.
      O autor lembra de outras experiências de descentralização através dos tempos, como as primeiras Cidades-Estado, ou Repúblicas Livres, da Europa Medieval, “que surgiram no início pela necessidade de proteção mútua numa época de desordem” (George Woodcock, Reflexões sobre a descentralização, in Os Grandes Escritos Anarquistas, L&PM Editores, Porto Alegre, 1981).      
      Estas cidades eram livres, acrescenta, “durante séculos, na Itália e na Alemanha, foram as sedes de todo o conhecimento e da arte européia, gozando de toda a liberdade que poderia existir no mundo daqueles tempos” (George Woodcock, op.cit).
      Outras comunas nasceram e floresceram na Suíça – algumas delas ainda mantêm um razoável grau de autonomia, no início do século 21. Mas a Revolução Francesa, que criou o conceito de Estado moderno, reforçou a política da centralização. Revolucionários como Jacques Roux protestaram contra essa tendência, clamando pela volta da idéia da comuna que floresceu no início da Revolução.
      No século 19, nas áreas da América do Norte ainda inexploradas, Woodcock nota que os seguidores de pensadores libertários como Fourier, Robert Owen e vários grupos cristãos “tentaram estabelecer comunidades independentes que pretendiam ser as células de um novo mundo fraternal” (George Woodcock op.cit).
      Dezenas de comunidades foram criadas. O movimento durou quase um século, mas sobreviveram apenas as comunidades religiosas “que tinham outros objetivos além da simples aplicação de teorias sociais” (George Woodcock, op.cit).
    
O CASO DAS COMUNIDADES RELIGIOSAS

      A resistência das comunidades religiosas fechadas permite a observação de que muitas experiências comunitárias de caráter revolucionário para sua época partiram de símbolos culturais e religiosos. Os cristãos primitivos, reunidos em pequenas comunidades, exerciam atividade política ao contestar o poder do Império Romano. Depois, a institucionalização do Cristianismo levaria à perseguição e marginalização dos grupos cristãos que chegaram a contestar a ordem dominante em sua época.
      Durante a Reforma protestante, o movimento anabatista na Alemanha – também de inspiração cristã protestante – representou outro momento de rebelião popular generalizada contra os poderes da época. Os próprios líderes da Reforma acabaram negando a legalidade do movimento anabatista e condenando seus líderes, como Tomas Munzer.
      As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), expressões da Igreja progressista na América Latina e que tiveram seu auge nas décadas de 1970 e 1980, foram igualmente células de contestação do poder opressor. E a ação política das Cebs não seguia nada mais do que os próprios preceitos dos Evangelhos, como no Magnificat:
      Derrubou dos seus tronos os poderosos
      e elevou os humildes.
      Encheu de bens os famintos
      e despediu vazios os ricos (Lc 1,52-53)

SOCIALISMO E ANARQUISMO

      As experiências de descentralização também integram a história do movimento socialista, com suas contradições características da condição humana. O movimento socialista, subsidiado teoricamente por Karl Marx e outros expoentes, no calor da Dupla Revolução, abriu nova fase na história da participação política.
      Para Marx, o motor da história é a luta de classes, a luta entre o proletariado e a classe dominante, a burguesia. Até aquele momento a ação política era limitada à classe dominante, e o socialismo resgatava a luta do proletariado, dos oprimidos, como a mais nobre manifestação da luta política.
      A transição entre o final do século 19 e início do século 20 também assistiu ao florescimento do anarquismo, identificado como a recusa de qualquer tipo de poder,muito embora não possa ser confundido com o caos total. Vários expoentes do anarquismo defenderam, isto sim, uma nova forma de encarar o poder, que não seria mais exercido por uma elite – todos tomariam parte desse poder.
      Como cada um teria o direito e o conseqüente dever de participar da política, chegaria o momento em que a necessidade de se ter um governo estaria abolida. Uma coordenação é claro que existiria, mas não poderia de forma alguma exercer suas prerrogativas de forma autoritária – a consulta popular seria atividade constante, não apenas com a ida às urnas nas eleições.
      Em outras palavras, a comunidade anarquista ideal seria absolutamente organizada, e não o reino do caos como o anarquismo costumou a ser qualificado e estigmatizado, à direita e à esquerda – os anarquistas foram massacrados fisicamente pelas forças da direita, mas ideológica e politicamente por grupos à esquerda, e essa circunstância foi fatal inclusive em termos da relação das sociedades em geral com a natureza.


Muro de Berlim, símbolo de "outro socialismo"


      Pela sua crítica radical à hierarquia social, o anarquismo é potencialmente muito mais crítico do que o socialismo marxista à hierarquia estabelecida na relação entre homem e mulher e homem e natureza. O patriarcalismo e o antropocentrismo, duas das características da sociedade tecnocrática, são antagônicas à essência do anarquismo.
      Se o anarquismo tivesse prevalecido ou, no mínimo, se igualado em influência no ascendente movimento operário mundial, entre final do século 19 e início do século 20, a luta pela igualdade das mulheres e pelo respeito à biosfera não demoraria tanto para ser impulsionada, o que ocorreu somente, com força, a partir dos mágicos anos 60.
      A construção de um novo marco civilizatório, a partir das Ecocidades como base e através da Ecopolítica do Amor, deve recuperar, então, o pensamento anarquista como importante fonte de reflexão.              
      A democracia popular característica do anarquismo foi observada, de alguma maneira, na própria Revolução Soviética de 1917. “Todo o poder aos sovietes”, era o lema da época. Contudo, a atividade política sob o regime comunista, no modelo burocratizado, terminou ficando novamente concentrada em um pequeno grupo, a elite do partido, repetindo a orientação da atividade política no capitalismo. O centralismo democrático foi a palavra de ordem no comunismo burocratizado durante muito tempo.
      É óbvio que nos diferentes países do “socialismo real” muitos avanços foram obtidos em termos de participação popular nas decisões. Podem ser citados os Comitês de Defesa da Revolução em Cuba e na Nicarágua. Com a Perestroika e a Glasnost na ex-União Soviética havia a perspectiva de ampliação dos canais de participação política sob o comunismo. Mas não houve tempo...
      Mesmo no âmbito do urbanismo a influência do anarquismo foi forte, na transição dos séculos 19 e 20, e a materialização em maior escala dessa influência talvez tivesse resultado em cidades menos artificiais e funcionais do que aquelas que “vingaram” na sociedade tecnocrática. Na avaliação de Peter Hall, em seu monumental Cidades do Amanhã:
      “É realmente surpreendente o fato de que muitas – não todas, de maneira alguma – das primitivas visões do movimento urbanístico tenham como origem o movimento anarquista que floresceu nas últimas décadas do século XIX e nos primeiros anos do século XX. Isso vale para (Ebenezer) Howard, para (Patrick) Geddes e para a Regional Planning Association of Americana, tanto quanto para os seus muitos derivados no continente europeu. (Não valeu, contudo, e quanto a isso não há qualquer dúvida, para Le Corbusier, que era um centralista autoritário, nem para a maioria dos componentes do Movimento City Beautiful, fiéis serviçais do capitalismo financeiro ou de ditadores totalitários.). A visão desses pioneiros anarquistas não era meramente a de uma forma construída alternativa, mas de um sociedade baseada na cooperação voluntária entre homens e mulheres, trabalhando e vivendo em pequenas comunidades autogeridas”. (Peter Hall, Cidades do Amanhã, Editora Perspectiva, São Paulo, 2002, página 4).
      O autor lamenta como a questão evoluiu: “Não apenas por sua forma física, mas também pelo espírito, essas comunidades constituíam, portanto, versões seculares da colônia puritana de Winthrop no Massachusetts: cidade em topo de colina. Quando, porém, chegou finalmente a hora de seus ideais traduzirem-se em tijolo e cimento, a ironia foi que – com freqüência até excessiva – a concretização do sonho ocorreu mediante a intervenção de burocracias estatais, o que para os sonhadores deve ter sido detestável”. (Peter Hall, op.cit., página 4)
      Hall cita como Ebenezer Howard (1850-1928), um dos sonhadores do urbanismo anarquista, deve muito a pensadores desse movimento: “... cada uma de suas idéias pode ser encontrada no passado e, com freqüência, repetida à exaustão: Ledoux, Owen, Pemberton, Buckingham e Kropotkin, todos projetaram cidades para populações limitadas, circundadas por cinturões verdes de terras cultivadas; More, Saint-Simon, Fourier, todos projetaram cidades como elementos de um complexo regional” (Peter Hall, op.cit., página 107)
      Alguns frutos urbanísticos foram gerados da influência anarquista, como a Cidade Jardim (exemplificada em projetos como de New Earswick, Letchworth, Hampstead, Welwyn Garden City e uma parte de Manchester, na Inglaterra) e o Planejamento Regional, estimulado sobretudo por Patrick Geddes (1854-1932). “De seus contatos com os geógrafos franceses na virada do século, Geddes absorvera o credo do comunismo anarquista, baseado em livres confederações de regiões autônomas” (Peter Hall, op.cit., página 161).
      O ideário de Geddes é muito marcado pela preocupação com os limites dos recursos naturais de uma área que seria urbanizada, bem de acordo com o que defende o ecologismo contemporâneo. “O planejamento deve começar, segundo Geddes, com o levantamento dos recursos de uma determinada região natural, das respostas que o homem dá a ela e das complexidades resultantes da paisagem cultural” (Peter Hall, op.cit., página 165)       
      E algo importantíssimo: Geddes se preocupava acima de tudo com as condições hídricas da região a ser urbanizada. Como dizia, em um de seus escritos, citado por Hall: “Tal levantamento de uma série de nossas próprias bacias hidrográficas (...) será considerado como a mais sólida das introduções para o estudo das cidades (...) até mesmo nas maiores cidades é útil que o pesquisador restabeleça constantemente o enfoque elementar e semelhante ao do naturalista” (in Peter Hall, op.cit., página 165)
     Como as metrópoles do século 21 não seriam diferentes se alguns desses ensinamentos tivessem sido observados... De qualquer forma, mesmo partes de grandes áreas metropolitanas como Londres foram planejadas de acordo com princípios do Planejamento Regional de Geddes e seguidores.
      Entretanto, o que acabou prevalecendo, no cenário capitalista e mesmo do “socialismo real” foram os projetos urbanísticos excludentes, não-ecológicos e autoritários, como lamentam Peter Hall e outros historiadores importantes do urbanismo. Caso, segundo Hall, da cidade ideal de Le Corbusier, que dizia: “Projetar cidades é tarefa por demais importante para ser entregue aos cidadãos” (in Peter Hall, op.cit., página 245) Ecos do ideário de Le Corbusier, como resgata Hall, estão presentes em várias partes, como na Brasília plantada do coração do Brasil.


No Centro Administrativo do governo de Minas Gerais: ecos de Le Corbusier, como em Brasília? 

      Está claro que, inclusive em termos urbanísticos, o ideário de matriz anarquista merece ser recuperado quando se sonha com novas cidades. As Ecocidades que podem sair das Agendas 21 Locais.

VIVER EM COMUNIDADES: MERA UTOPIA?

      A participação popular direta nas instâncias decisórias tem sido um dos maiores sonhos dos movimentos libertários na história humana. Geralmente a democracia direta foi relegada ao plano da utopia – sonho de românticos, poetas, mas distante da realidade.
      Porém, em uma sociedade eco-socialista – a partir das Ecocidades – a democracia direta deve ser a prática cotidiana. O poder será descentralizado e, na comunidade em que vive, sentindo-se responsável pelo todo, o indivíduo terá a sua parte da melhor forma possível. Os talentos individuais não terão maiores barreiras para se desenvolver, mas isso não significa que haveria o individualismo extremo – o respeito à integridade de cada um levará ao respeito à integridade de todos.
       O movimento Gramdan, na Índia, é um exemplo de democracia direta na prática. O movimento nasceu da luta não-violenta deflagrada por Gandhi que levou à independência da Índia do domínio britânico. Mas apenas a independência não era suficiente para livrar os milhões de indianos da opressão e da miséria – a terra continuava concentrada em poder de poucos.
      Foi então iniciado um movimento de reforma agrária, através do Bhoodan – a doação e divisão da terra para os pobres. As áreas resultantes dessa divisão de terras se tornariam Gramdan – a comuna, onde não existiria a propriedade privada, mas o uso da terra por todos, e onde o poder de cada um seria respeitado em benefício de todos. Para administrar o todo, mas sem desrespeito à vontade de cada um, seria constituído o Gram-Sabba – Conselho de Aldeia ou Conselho Municipal.
      Liderado por Vinoba, um seguidor de Gandhi, o movimento do Gramdan cresceu e, no início de 1957, mais de 2 mil comunas estavam organizadas na Índia. No final dos anos 60 e início dos 70, 80 mil Gramdans estavam organizados em onze regiões da Índia. Posteriormente, de novo o poder se recompôs e os Gramdans foram paulatinamente desmantelados. Ficou o princípio da comuna, que continuou alimentando o sonho de muitos.
      Um dos princípios básicos do movimento Gramdan era o da Satyagraha, o amor à verdade defendido por Gandhi. Para a concretização de uma sociedade justa, seus membros devem praticar a verdade sempre, como norma de vida. O exercício da verdade foi um dos princípios das CEBs. Nelas os cristãos procuravam praticar a verdade, a autenticidade, a sinceridade cotidianamente. As tarefas eram divididas por todos, e as discussões compartilhadas.
      Falar, falar, falar a verdade. Este foi um dos lemas do existencialismo, que pregava a autenticidade como um dos princípios elementares da vida. O ser humano, para o existencialista, não nasce e cresce acabado – ele faz-se na prática diária. É ele quem deve determinar seu projeto de vida, assumindo suas próprias responsabilidades. Mas para isso deve praticar a autenticidade.
      Muito mais do que um corpo doutrinário filosófico fechado, o existencialismo foi um modo de viver a  vida em plenitude, contra a mentira institucionalizada. O movimento existencialista alcançou o seu apogeu no pós-Segunda Guerra Mundial, quando o planeta ainda se questionava sobre o sentido de um modo de “vida” que levou à morte milhões de seres humanos. Nos cafés de Paris, como o Le Flore de Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, os existencialistas chocavam o bom-mocismo, as aparências da sociedade fundada na hipocrisia, com suas atitudes irreverentes, debochadas.
      De certo modo os existencialistas estavam resgatando a palavra das trincheiras e câmaras de gás da morte científica da Segunda Guerra. Walter Benjamin, um dos grandes nomes da Escola de Frankfurt, observou como o silêncio prosperou após o segundo grande conflito global. As palavras não podiam traduzir os horrores perpetrados em Dachau ou Auschwitz.
      Naquele rápido momento em que, no outono europeu de 1988, estive na porta de Dachau – preservado para que as novas gerações não se esqueçam do que o poder na mão de loucos pode fazer – pude sentir o cheiro do mal. O cheiro da negação da vida, que merece ser recuperada e transportada para o centro da sociedade do Terceiro Milênio, que será biocêntrica ou não será. E para isso é fundamental o resgate do sentido da política, em sua essência de construção da cidade justa, igualitária e solidária, a Ecocidade.        

O TRINÔMIO DA ECOPOLÍTICA AMOROSA

      Descentralização, comunidade com fortalecimento do poder local, zelo pela verdade. É este o trinômio da Ecopolítica. Integrado na comunidade participativa, de reverência pela vida e de respeito à diversidade, o ser humano não se sentirá peça da grande engrenagem da sociedade tecnocrática. Podendo desenvolver suas potencialidades, ele se sentirá responsável pelo todo, na medida em que o todo respeita a sua individualidade.
      E uma sociedade eco-socialista deve ser holística – cada parte se sentindo responsável pelo todo. No eco-socialismo, o indivíduo vai pensar muito antes de fazer qualquer ato que colabore para a degradação ambiental que afeta a todos. Essa tarefa, de preocupação com o todo, será facilitada pela descentralização – serão as próprias comunidades que decidirão, ouvidos os seus membros, sobre ações que afetarão as suas vidas, as vidas de seus filhos e netos – e a vida toda contida na Biosfera.
      Um projeto de possível degradação ético-ambiental, como uma usina nuclear ou rodovia cortando floresta de intensa biodiversidade, não seria instalada sem a consulta popular. Não por acaso, em uma sociedade descentralizada, o tipo de energia ideal é aquela proporcionada por fontes renováveis e sustentáveis. É o caso da energia solar, que se utiliza dos raios solares que incidem, “democraticamente”, sobre qualquer ponto do planeta. Na sociedade descentralizada, a energia não seria concentrada em gigantescas plantas de geração – paradigmas de uma sociedade concentrada.
      A descentralização é fundamental, mesmo no contexto das democracias fundadas somente no voto como ato político. Continuará importante a eleição cíclica de vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da República. Mas importante mesmo, essencial, é a criação e/ou fortalecimento de mecanismos para viabilizar a participação popular em decisões que afetam a vida de todos, como os Conselhos Municipais, órgãos incentivados pela Constituição brasileira de 1988.  Os reclamos por uma democracia participativa são cada vez mais evidentes em escala planetária. E mesmo na política formal, evoluem siglas pequenas, com histórico de identificação com a nova cidadania da Era da Nanocultura.

A POLÍTICA COM AMOR, A ECOPOLÍTICA

      A civilização ecológica será assim: descentralizada em todos os sentidos, para que cada parte se sinta responsável pelo destino do todo, na medida em que sua opinião própria é respeitada. Será uma sociedade de homens e mulheres autênticos. E livres. Não havendo excesso de  utilização da energia pessoal no trabalho obsessivo e alienante, homens e mulheres exerceriam sua sexualidade em plenitude, seriam personalidades integralmente erotizadas, e a energia produzida seria empregada no desenvolvimento de aptidões de cada um. E sendo completos, não vendo barreiras para o desenvolvimento de sua personalidade, a pessoa vai exercer a autenticidade em plenitude.
      A política, na Ecocidade, será feita com amor. E como o amor. Cada um pensará no outro, um e outro pensarão no todo, na vida toda – esta é uma das mais puras formas de amor. Uma sociedade eco-socialista será erotizada, amorosa. Uma sociedade feita de vida, de energia em expansão. Uma sociedade solar. A Agenda 21 Local pode ser portal para essa trilha.
         

CAPÍTULO III

ECOFEMINISMO: AS MULHERES E A NOVA SOCIEDADE

      A tragédia de Antígona foi imortalizada na peça de Sófocles, e permanece  como marco referencial da luta das mulheres pelo resgate de sua voz abafada pela sociedade tecnocrática. Os princípios básicos do ecofeminismo, que pressupõem igualdade não apenas entre homens e mulheres, mas também entre todos seres humanos e natureza como parte de um todo, são fundamentais ao estabelecimento da nova sociedade.
      A ordem tecnocrática é essencialmente machista, pois foi erguida com a submissão da mulher ao homem. Entretanto, a discriminação não pára por aí. Negros, índios, socialistas, cristãos, ecologistas – são vários os grupos oprimidos, dependendo do contexto social. Ao propugnar pelo fim do machismo como forma de dominação, o ecofeminismo também propõe o fim do rótulo, do estigma, e aponta para uma nova sociedade em que as diferenças culturais, religiosas e ideológicas sejam respeitadas em sua plenitude. Aqui, uma síntese da luta histórica das mulheres por uma nova sociedade, e suas propostas para um mundo novo. Uma luta que questiona o paradigma cientificista que separa, que isola, que fragmenta e que rotula e exclui.

A JUSTIÇA E AS RAZÕES DE ESTADO

      Em sua peça, Sófocles conta como Antígona decide enfrentar as razões de Estado, em nome da fraternidade e da justiça. Os seus dois irmãos, Etéocles e Polinice, haviam se entregado a uma luta fratricida pelo poder, após a morte do pai, Édipo. Etéocles e Polinice morrem no combate. Creonte, o novo ditador de Tebas, determina o enterro dos restos mortais de Etéocles, mas proíbe terminantemente o féretro de Polimice. Quem desrespeitasse a ordem superior de Creonte seria executado. Imediatamente.
      Antígona se rebela, e decide promover o enterro do corpo de Polimice. Descoberta, assume o gesto, e trava com Creonte um diálogo de rara beleza na história do teatro:
Creonte – Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?
Antígona – Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
Creonte – E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?
Antígona – Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou, e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos. Nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infrigir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis. Não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! – Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses!

      Antígona completa, ciente  do destino que lhe estava programado, ao cometer, aos olhos do poder, um ato imperdoável de desobediência civil:
n  Que vou morrer, eu bem sei. É inevitável. E morreria mesmo sem a tua proclamação. E, se morrer antes do tempo, isso será, para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte? Assim, a morte que me reservas é um mal que não se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura. Tudo o mais me é indiferente! Se te parecer que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!

      As palavras de Antígona não deixam dúvidas quanto ao caráter irracional que rege os caminhos supostamente racionais do poder. Em nome da manutenção do status quo, não se admite um ato de suprema justiça – o de enterrar os restos mortais de um ser humano.
      No contexto da ordem tecnocrática, o funcionamento supostamente racional da sociedade é levado ao extremo, e todo comportamento considerado destoante recebe o rótulo de subversivo, perigoso. O movimento feminista, que tem avançado substancialmente desde a década de 1970, é um dos núcleos de resistência à tecnificação da vida, à redução da vida a números e cifrões. Ao expor as feridas do mundo machista, o ecofeminismo contribui para a crítica radical dos fundamentos da ordem tecnocrática, e constitui-se, por isso, em uma das pontas de lança da nova civilização, da Era da Nanocultura, da sociedade eco-socialista.

MORTE DO MATRIARCADO

      Em A crise das Gerações, Gerard Mendel defende que a introjeção da figura paterna ocorreu no período neolítico. Foi quando o ser humano colocou as mãos sobre a natureza para transformá-la – a identificação com a figura do pai impedia a fusão com a imagem materna, por sua vez associada às forças da natureza.  
      O retorno à natureza, o regresso ao útero da Mãe Terra, é um desejo que tem suas raízes fincadas nos recônditos mais profundos da memória humana. A Deusa-Mãe da fertilidade foi a matriz de múltiplos códigos religiosos por toda a antiguidade, desde os primórdios do Neolítico. A Deusa-Mãe é o princípio, a gênese civilizatória.      
       O primado do deus masculino, dominador como a sociedade patriarcal e devastadora de todas as formas de vida, é muito recente na história da humanidade. Talvez o que estejamos assistindo, no parto da Era Ecológica, seja o resgate da Deusa-Mãe, seqüestrada e tirada do trono pelo deus único, monolítico e masculino das culturas que se tornaram dominantes, particularmente no Ocidente.     
     No sistema de crenças desenvolvido na região entre os rios Tigre e Eufrates, berço de muitas inovações caras ao desenvolvimento da civilização ocidental, como o sistema hidráulico, a escrita, a roda e práticas agrícolas, a Deusa-Mãe tinha várias faces sedutoras, como da divindade do amor Ishtar ou da fertilidade Anu, a abóbada celeste geradora da água, a substância da vida.      A mitologia grega é, especialmente, pródiga de referências à Deus-Mãe. Gaia é a própria Terra.
      A introjeção da figura paterna – decretando o exílio da Deusa-Mãe – foi reforçada pelo monoteísmo ocidental, sedimentado com o judaísmo e o cristianismo. No relato bíblico, a mulher foi criada da costela de um homem, e foi por culpa da mulher que os seres humanos foram expulsos do Paraíso, onde conviviam em harmonia com a natureza.
      Para o conjunto doutrinário cristão disseminado no curso dos últimos vinte séculos, homem e mulher foram feitos à imagem e semelhança de Deus, mas foi sob a forma de um homem que o Deus encarnou-se na forma humana. Do mesmo modo, os fundadores da Igreja – sempre de acordo com a interpretação machista da Bíblia – foram homens, os doze apóstolos, e um deles, Pedro, sagrado o primeiro Papa.
      É óbvio que tudo é questão de interpretação, utilizada pelos poderosos de cada época de acordo com os seus interesses. Ultimamente, a face feminina de Deus vem sendo resgatada, sobretudo sob o estímulo da Teologia da Libertação. As mulheres teólogas vêm questionando com renovado vigor a masculinização da concepção de Deus e, com isso, contribuindo para minar um dos alicerces da ordem tecnocrática.
      No âmbito da Igreja Católica e de outras Igrejas cristãs, é emergente a luta por igualdade nas decisões entre homens e mulheres. O sinal mais cristalino dessa luta emergente é o fato de que cerca de 80% das lideranças das comunidades eclesiais de base – movimento responsável pela renovação do Cristianismo, à luz da Teologia da Libertação – eram compostas de mulheres no seu auge, entre décadas de 1970 e 80.
     
O CORPO SUBVERTE

      A crítica à visão masculina da sociedade e da natureza apresenta pontos de intersecção com o resgate da importância do corpo, em face da aparente onipotência da ordem tecnocrática. A repressão dos instintos vitais, no entender de Freud, é básica para o estabelecimento da civilização. Em Eros e Civilização, o alemão Herbert Marcuse, um dos guias espirituais da rebelião juvenil dos anos 60, disseca esse tese basilar do pensamento freudiano.  A obra de Marcuse tornou-se referência do movimento feminista e ecológico desde a década de 1970.
      Na interpretação de  Marcuse, Freud defende a tese de que a civilização, a cultura, nasce da repressão dos instintos vitais primários do ser humano. A livre satisfação desses instintos conduziria à barbárie, ao retorno aos tempos das hordas primitivas.
      A repressão dos instintos primários dá-se, na argumentação freudiana, pela introjeção do Princípio de Realidade, que em poucas palavras seria o conjunto de normas que a pessoa tem de obedecer, para garantir o perfeito funcionamento do corpo social. A introjeção do Princípio de Realidade, através da chamada, por Freud, sublimação repressiva, representa a sua vitória sobre o Princípio do Prazer, constituído pelas forças de Eros, o Deus da Vida.
      Ao reprimir seus instintos vitais, o homem cria a cultura, os valores culturais que irão administrar a sua vida. A cristalização do Princípio de Realidade, comenta Marcuse, representa a condenação da sexualidade polimórfica, que seria a satisfação dos instintos primários, o livre desenvolvimento dos sentidos. Com a vitória do Princípio de Realidade, a sexualidade se reduz à relação genital. A atividade sexual se concentra em determinado ponto do corpo do(a) parceiro(a). Os demais sentidos vitais, o ver, o sentir, o cheirar com prazer – suja satisfação plena é garantida na sexualidade polimórfica – ficam reservados para sua aplicação no trabalho. Com isso, acrescenta Marcuse, a sociedade tecnocrática assegura a abundância de seu combustível essencial – o trabalho humano.
      Por outro lado, a atividade sexual reduzida à relação genital, completa Marcuse, circunscreve a sexualidade à reprodução. E o papel reprodutivo, reservado em especial à mulher, é um atributo do casamento monogâmico pregado pela doutrina judaico-cristã. Sexo fora do casamento, consagrado pelas leis da Igreja, é um pecado a ser castigado pela ira divina (posição da Igreja sobre camisinha no século 21).
      Em Eros e Civilização,  cuja primeira edição data de 1955, em plena Guerra Fria, Marcuse demonstrou otimismo ao salientar que a própria dinâmica da civilização industrial poderia levar à supressão da necessidade de repressão dos instintos vitais como base da cultura. A automação, por exemplo, poderia redundar na diminuição do tempo de trabalho e, com isso, o ser humano poderia ampliar os raios de ação de sua sexualidade,que fora sublimada na relação genital.
      Contudo, em uma obra posterior, A Ideologia da Sociedade Industrial, Marcuse foi mais cético, ao assinalar que as “conquistas” da civilização tecno-industrial levara à administração dos mesmos instintos vitais que seriam supostamente liberados. A plena dominação da natureza pela máquina tecnocrática resultou na deserotização da natureza e do humano Diz Marcuse:
      “O ambiente no qual o indivíduo podia obter prazer – que ele podia concentrar como agradável, quase como uma zona estendida de seu corpo – foi reduzido. Conseqüentemente, o “universo” de concentração de seus desejos libidinosos é do mesmo modo reduzido. O efeito é uma localização e contração da libido, a redução da experiência erótica para experiência e satisfação sexuais” (Herbert Marcuse, A Ideologia da Sociedade Industrial, Zahar Editores, Rio de Janeiro,  6a edição, 1982, página 83)
      Marcuse continua, para condenar a mecanização do ambiente, a dominação da natureza, que levou à deserotização:
      “Por exemplo, faça-se uma comparação entre o amor numa campina e o amor num automóvel, numa alameda nos arredores da cidade e numa rua de Manhattan. Nos casos anteriores, o ambiente compartilha e convida à concentração dos desejos libidinosos e tende a ser erotizado. A libido transcende as zonas erógenas imediatas – um processo de sublimação não repressiva. Em contraste, um ambiente mecanizado parece bloquear tal autotranscendência da libido. Impelida no esforçado de ampliar o campo de satisfação erótica, a libido se torna menos ‘polimorfa’, menos capaz de eroticismo até da sexualidade localizada, e esta é intensificada”(Marcuse, op.cit, página 83).
      Sob este prisma, para Marcuse, a propalada liberação sexual na ordem industrial-tecnológica não passa de institucionalização da relação sexual genital, em nome da deserotização dos sentidos, que continuam reservados para sua aplicação no trabalho alienante e desprazeroso. Os instintos vitais primários, que regem o Princípio do Prazer, “não precisam” ser satisfeitos sem o estímulo da sexualidade polimorfa – eles já estão satisfeitos nas atividades programadas para o “tempo livre” do trabalhador nos shoppings centers, academias de dança etc.
      Em outras palavras, a diminuição do tempo de trabalho na sociedade tecno-industrial não significa automaticamente a “ressurreição da sexualidade polimórfica, pois os impulsos eróticos continuam concentrados na relação genital. Pilotar uma lancha, empurrar o cortador de grama motorizado pelo jardim, dirigir um automóvel em alta velocidade são exemplos de satisfação dos instintos primários “domados” pela ordem tecnocrática.

A EROTIZAÇÃO DA NATUREZA

      Uma alternativa à sublimação repressiva da sexualidade, que leva à concentração da atividade sexual na relação genital, foi apresentada por Marcuse, a partir do resgate da atividade lúdica, da fantasia, a seu ver condenada pela ânsia de produtividade a qualquer custo da sociedade industrial – nesta sociedade, todas atividades são orientadas pelo princípio de desempenho, pela aplicação das potencialidades humanas no processo produtivo desmedido.
      Para o pensador alemão, Prometeu é o herói-arquétipo do princípio de desempenho: “Ele simboliza a produtividade, o esforço incessante para dominar a vida; mas, na sua produtividade, abençoada e maldita, o progresso e o trabalho sofrido estão inextricavelmente ligados” (Herbert Marcuse, Eros e Civilização, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 8a edição, página 147)
      Na opinião de Marcuse, “no mundo de Prometeu, Pandora, o princípio feminino, sexualidade e prazer, surge como maldição – desintegradora, destrutiva” (Herbert Marcuse, op.cit., página 147. Acrescenta Marcuse que “a beleza da mulher e a felicidade que ela promete são fatais no mundo de trabalho da civilização” (Herbert Marcuse, op.cit, página 148).
      Em outros termos, para Marcuse, a mulher não está naturalmente orientada pelo princípio de desempenho, do trabalho incessante, em nome da produtividade crescente. Depreende-se de sua argumentação que, para Marcuse, há uma identificação da mulher com a sexualidade polimórfica. Conseqüentemente, a retomada da visão feminina de mundo, sociedade e natureza leva ao questionamento dos próprios pilares da ordem tecnocrática.
      Contra a visão prometéica do mundo, Marcuse propõe a recuperação da visão órfica e narcisista, que em última análise se identifica com a ótica feminina. “Se Prometeu é o herói cultural do esforço laborioso, da produtividade e do progresso através da repressão, então os símbolos de outro Princípio de Realidade devem ser procurados no pólo oposto. Orfeu e Narciso (como Dioniso, com quem são aparentados: o antagonista de Deus que sanciona a lógica da dominação, o reino da razão) simbolizam uma realidade muito diferente. Não se converteram em heróis culturais do mundo ocidental, a imagem deles é a da alegria e da plena fruição; a voz que não comanda, mas canta; o gesto que oferece e recebe; o ato que é paz e termina com as labutas da conquista; a libertação do tempo que une o homem com Deus, o homem com a natureza”.
      Marcuse sublinha que a experiência órfica e narcisista do mundo – ou seja, a experiência da fantasia, da poesia, do jogo, da atividade lúdica em relação à vida, de não-compromisso com a neurose produtivista – “nega aquilo que sustenta o mundo do princípio de desempenho” (Herbert Marcuse, op.cit., página 151). Ele completa:
      “A oposição entre homem e natureza, sujeito e objeto, é superada. O ser é experimentado como gratificação, o que une o homem e a natureza para a realização plena do homem que seja, ao mesmo tempo, sem violência, a plena realização da natureza. Ao falar-se-lhes, ao serem amados e cuidados, os animais, as flores e as fontes revelam-se como tal. Como são – belos, não só para os que se lhes dirigem e os contemplam, mas para eles próprios, ‘objetivamente’” (Herbert Marcuse, op.cit., página 151).
      No Eros órfico e narcisista, continua Marcuse, “essa tendência liberta-se: as coisas da natureza ficam livres para ser o que são. Mas para ser o que são, elas dependem da atitude erótica: só nela recebem seu telos” (Herbert Marcuse, op.cit., página 151). Em síntese, o que Marcuse propõe é uma nova erótica, propiciada pelo resgate da visão feminina do mundo, da sociedade e da natureza. A visão machista do mundo reduziu a sexualidade à atividade reprodutora. A redução da sexualidade polimórfica – a livre satisfação de todos instintos vitais – à relação genital foi crucial para o desenvolvimento do capitalismo e do “socialismo real” produtivista, pois os demais sentidos que complementam a sexualidade polimórfica ficam destinados para sua aplicação no trabalho, no princípio de desempenho.
      Ora, a satisfação da sexualidade polimórfica significa, portanto, o questionamento do princípio do desempenho e, no fundo, da própria visão machista de mundo. O corolário desse raciocínio é que uma sociedade de respeito ao equilíbrio ambiental seria uma sociedade plenamente erotizada, o que apenas seria possível com a recuperação da visão feminina das relações humanas e do ser humano com a natureza.

ECOFEMINISMO: LIBERTAÇÃO DO CORPO E DA NATUREZA

      A sociedade ocidental, ao assumir a visão masculina das relações humanas e da natureza, destinou à mulher papéis secundários. Mesmo pensadores historicamente identificados com posições libertárias deixaram a mulher em segundo plano.
      Na Utopia,  de Thomas Morus, a mulher não tinha posição de relevo na condução dos negócios de Estado. O programa de “Seis Pontos” do movimento trabalhista na Inglaterra, que ainda vivia os ventos da Dupla Revolução – Industrial e Francesa – refletia a despreocupação com a situação da mulher. Os “Seis Pontos” da chamada Carta do Povo pediam” 1) sufrágio masculino; 2) votação secreta; 3) distritos eleitorais iguais; 4) pagamento dos membros do Parlamento; 5) parlamentos anuais; e 6) abolição da condição de proprietário para os candidatos (7).
      De fato, o voto feminino foi alcançado em sua plenitude, na maioria dos países, apenas nas primeiras décadas do século 20. A própria evolução do capitalismo – e do “socialismo real” –, entretanto, acabou propiciando a emergência da visão feminina de mundo, que já havia tomado lugar central no Romantismo.
      Em 1949, no vácuo da indignação mundial com a Segunda Grande Guerra, Simone de Beauvoir publica O Segundo Sexo, que se torna a bíblia do movimento feminista emergente. Mas foi na década de 1960 que o feminismo emergiu como valor sólido, nas fissuras abertas pela contestação em todas frentes da ordem tecnocrática.
      Em 1974, na esteira da contestação radical dos valores do capitalismo (e também do produtivismo real-socialista), Françoise D ‘Eaubonne publica na França uma das obras basilares do feminismo moderno: O Feminismo ou a Morte. No livro, D’Eaubonne apresenta a expressão Ecofeminismo, para codificar as semelhanças que apontava entre o movimento ecológico e o movimento feminista.
      Em artigo publicado originalmente na revista  Mulheres e Meio Ambiente, Katherine Davies, diretora do Escritório de Proteção Ambiental de Toronto, Canadá, recupera, em 1988, o sentido do ecofeminismo, sob os influxos da emergência do movimento ecológico mundial – que culminou com a Eco-92. Observa Katherine que o ecofeminismo está baseado em quatro princípios: holismo, interdependência, igualdade e processo.
      O ecofeminismo assume uma visão holística da vida, o que pressupõe a interação dos múltiplos ciclos vitais e ecossistemas existentes no mundo. Conseqüentemente, para o ecofeminismo, todas as espécies, animais, vegetais, microorganismos, minerais, estão vivendo em freqüente processo de interação – um depende do outro, a crise em alguma parte incide sobre o funcionamento perfeito do todo.         
      O outro princípio do ecofeminismo, o de encarar a vida como processo, subverte a concepção tecnocrática do futuro como tempo ideal. A vida, para o ecofeminismo, é um fluir constante, ininterrupto. Mas ela deve ser vivida agora, seus prazeres – e por que não – suas crises não podem ser adiados em função das promessas de um futuro radioso que pode não acontecer. A visão de vida como processo não implica, porém, que a luta utópica, o desejar um mundo melhor – um mundo mulher – é uma atitude despida de sentido. Para o ecofeminismo, o que acontece é que nem sempre os fins justificam os meios – em nome de um futuro radioso, pode-se cometer os maiores crimes agora, seja na direita ou na esquerda?
      A essa altura, a maior contribuição do ecofeminismo para a luta eco-socialista parece ser o de encarar a vida como um processo globalizante. A sociedade industrial foi construída sobre uma visão maniqueísta da vida: bem versus mal, bonito versus feio, corpo versus matéria, cultura versus natura.
      Na sociedade ocidental, não há meio termo. Ou se é isto, ou se é aquilo. A concepção religiosa judaico-cristã sedimentou a visão maniqueísta do mundo, ao enfatizar o dualismo corpo/espírito. Já a racionalização científica, inerente à sociedade tecnocrática, e que nasceu no bojo da Dupla Revolução – Industrial e Francesa - , acentuou a polarização maniqueísta, ao segmentar e promover a especialização dos campos do saber.
      Em Gênese do Homem Ecológico – o Instinto Reencontrado, Michel Odent comenta que a ordem industrial-tecnológica facilita a especialização dos hemisférios cerebrais, o que leva ao reforço da visão masculina de mundo. Ele retoma os princípios de animus e anima de Jung, ao caracterizar o hemisfério esquerdo (animus) do cérebro como a parte lógica, analítica, abstrata, e o hemisfério direito (anima) como o espaço concreto, global, intuitivo e emocional do aparelho cerebral. 
      Animus é o princípio masculino, e corresponderia ao hemisfério esquerdo do cérebro. Anima, o princípio feminino, característico do hemisfério direito. Para Odent, a ordem tecnocrática, fundada no racionalismo hipercientífico e que valoriza o desempenho masculinizante, favorece a especialização hemisférica, supervalorizando as capacidades particulares do hemisfério esquerdo, masculino.
      É uma tese controvertida, criticada até por algumas feministas, mas trata-se de correspondência com as divisões existentes na ordem global, entre Norte e Sul, entre ricos e pobres no interior de mesmo país, entre homens e mulheres, brancos e não-brancos, entre uma cultura dominante e outras, resistentes, entre ser humano e natureza, entre políticos profissionais e os cidadãos supostamente não-políticos. O ecofeminismo propõe superar essas desigualdades, a partir de nova visão da vida, uma vida plural e polifacética, percebida holisticamente e assim vivida, contra a fragmentação cartesiana.
      Contra a visão racionalista da ordem tecnocrática, o próprio Odent sugere uma nova noção de saber, outra forma de ver o mundo. Ele cita alguns princípios do taoísmo, que prega um “não saber”, um saber que não emprega a mediação abstrata da palavra, que supõe a unidade do homem com o objeto a ser não conhecido, mas vivenciado e, por que não, amado – em suma, uma identificação da humanidade com a natureza, e não a dominação desta por aquela a título de conhecimento e transformação em objeto de lucro.
      Michel Odent destaca, igualmente, a noção africana de saber, nas palavras de Leopold Senghor: “(...) consideremos o negro africano ante o objeto para conhecer, ante o outro: Deus, homem, animal ou pedra, fato natural ou fato social. Ao contrário do que faz o europeu clássico, o negro africano não se distingue do objeto, não o mantém à distância, não o mira, não o analisa. Mais exatamente, depois de havê-lo mantido à distância, depois de havê-lo mirado, o colhe vivo em suas mãos, evitando mata-lo ou imobilizá-lo. O toca, o apalpa, o sente sujeito e objeto dialeticamente confrontados no ato do não-conhecimento” (Michel Odent, Gênesis Del Hombre Ecológico, Ed.Ricou – Hacer).
      O autor de Gênese do Homem Ecológico cita, ainda, outra forma de saber, de ver o mundo, proposta por Maria Montessori, que a denominou de “inteligência do amor”:  “Este impulso irresistível que une a criança às coisas durante os períodos sensíveis constitui efetivamente um amor ao ambiente. É em realidade uma forma de amor, esta possibilidade que a criança possui de observar minuciosamente, com veemência, tudo o que a rodeia, descobrindo o que escapa aos adultos, já cegos para esses detalhes”.
      Esse novo saber, essa  nova forma de ver a vida humana e as relações com a natureza – este é o legado principal do ecofeminismo, em estreita conexão com a ecopolítica amorosa. Uma visão globalizante, apontando para uma globalização em rede, em um mundo feito de ligações intercapilares. Clara Gallini, uma das principais teóricas do novo feminismo italiano, assim define a plataforma do movimento:
      “Queremos viver como mulheres uma experiência totalizante: buscar uma vida na qual a pessoa deixe de ser fragmentada e atomizada – o ser racional de um lado, o ser emotivo de outro – e deixe de falar linguagens diversas, uma pra o trabalho, outra para a família, outra para a escola, outra para o casal. Recuperar uma certa unidade. Recuperar uma totalidade de pessoa também através de uma totalidade da linguagem. E recuperá-la através de uma experiência solidária, como terreno de identidade: eu sou tanto mais ou mesma quanto mais reconheço que o meu destino passa através do destino dos outros” (Clara Gallini, in Le Altre, org. por Rossana Rossanda, Ed.Bompiani, Milão, 1979 ).
     
ECOFEMINISMO: MULHERES TECEM NOVA SOCIEDADE

      As vozes femininas sempre foram consideradas subversivas aos ouvidos do poder. Acusadas de feitiçaria, porque respeitavam as determinações e fluxos da natureza, milhares de mulheres foram queimadas nas fogueiras da Inquisição (muitos autores identificam no massacre das “bruxas” o início da crise ecológica mundial).
      Entretanto, apesar das perseguições, várias mulheres se destacaram, através dos tempos, na contestação do status quo. Maria Madalena, Joana D’Arc, rosa Luxemburgo, Olga Benário, Patrícia Pagu Galvão, Leila Diniz – estas e outras têm enfrentado as normas da sociedade machista ocidental.
      Por outro lado, a sociedade comunista, em sua versão burocrática, não equacionou a luta da mulher pelo resgate de sua identidade, apesar dos grandes avanços obtidos. De acordo com dados da União Interparlamentar, a presença feminina no Soviet Supremo havia reduzido de 34,5% para 15,3% nas eleições de março de 1989, uma das últimas antes da derrocada soviética. Entre janeiro de 1988 e junho de 1989, a participação das mulheres nos parlamentos de todo o mundo havia caído de 14,6% para 12,7%.
      O mundo do poder, no capitalismo ou no “socialismo real” burocratizado, tem sido um mundo masculino. Mas neste momento de reorientação da ordem tecnocrática, de questionamento da visão racionalista e fragmentada da vida, o feminismo consolida a sua força, associada à luta ecológica e das chamadas “minorias”. Alguns dos grandes nomes do movimento ecológico e/ou ambientalista contemporâneo são de mulheres, como Petra Kelly, líder histórica dos Verdes na Alemanha, e Gro Harlem Bruntland, ex-primeira ministra da Noruega e responsável pela coordenação de Nosso Futuro Comum, o relatório preparatório da Eco-92.
      Em função da Eco-92, antes e depois dela, muitas iniciativas importantes evoluíram nessa área. Casos das ações do Instituto Internacional das Nações Unidas de Investigação e Formação para o Progresso da Mulher (INSTRAW), os vários debates sobre mulheres, meio ambiente e desenvolvimento sustentável (WED), Congresso Mundial da Mulher para um Planeta Saudável, em Miami, o Planeta Fêmea (durante o Fórum Global, na Eco-92), a Rede DAWN (Desenvolvimento com as Mulheres para Uma Nova Era) etc.
     A nova sociedade será necessariamente construída como resgate da visão feminina de mundo e da vida. Contra o primado do trabalho alientante, da razão opressora, da produtividade econômica destrutiva de vidas humanas e do meio ambiente, o ecofeminismo tem a oferecer um novo modelo de saber, o resgate do corpo como fonte de prazer, da sexualidade polimórfica, e também uma relação harmônica com a natureza. O eco-socialismo começa em todo ato que conteste a percepção machista da humanidade e da relação da humanidade com o meio ambiente.

CAPÍTULO IV

ECODESENVOLVIMENTO: MODELO QUE ENCANTA E RENOVA

      O assassinato do seringueiro Chico Mendes, a 22 de dezembro de 1988, imprimiu um ritmo alucinante ao debate ecológico. A pergunta é inevitável: por que a morte de um humilde, embora premiado pela ONU, seringueiro dos confins da Amazônia brasileira, perturbou tanto o sono dos donos do poder no Brasil, e contribuiu para o florescimento da discussão ecológica planetária?
      Chico Mendes e os seringueiros do Acre ganharam notariedade internacional em função de seu projeto básico: a defesa das reservas extrativistas. Chico Mendes e seus companheiros de seringal não sonhavam e nem sonham com uma floresta intocada. Para eles, é perfeitamente possível compatibilizar progresso/desenvolvimento com respeito ao meio ambiente. Nas reservas extrativistas, os produtos extrativistas, como seringa e castanha, poderiam ser explorados, sem prejudicar o equilíbrio ambiental.
      Na prática, o que os seringueiros do Acre propõem é um ecodesenvolvimento, termo caro a obras de pensadores como Ignacy Sachs. Chico Mendes e seus companheiros de seringal talvez nem tivessem ouvido falar na expressão ecodesenvolvimento, mas o que eles propugnam é exatamente isso: uma nova forma de desenvolvimento, modelada a partir da realidade dos países biodiversos, com tecnologias para as realidades locais.
      O projeto das reservas extrativistas, representativo do ideal ecodesenvolvimentista, nega na medula uma idéia corrente no meio neoliberal, e mesmo entre setores considerados progressistas, de que os ecologistas são in totum contrários ao desenvolvimento econômico e, por isso, estariam contribuindo para perpetuar a miséria dos povos do Terceiro Mundo.
      É verdade que um setor importante do movimento ambientalista manifesta nostalgia de uma natureza virgem da manipulação humana. Em termos marxistas, esse setor talvez seria chamado de “reacionário”, ao negar os benefícios do industrialismo, do desenvolvimento das chamadas forças produtivas, que teoricamente contribuiriam para livrar a pessoa humana das teias do medo, da pobreza e da ignorância, na medida em que elas, as forças produtivas, engendrassem uma nova classe social, o proletariado, que tomaria em suas mãos a tarefa revolucionária.
      Talvez fosse melhor referir-se a esse setor do movimento ambientalista como poético, romântico, e acima de tudo ético, e que não poderia ser censurado por sonhar com a natureza liberta da opressão tecnocrática.
      É neste contexto que emerge a força do conceito de ecodesenvolvimento. Desenvolvimento, sim. Conquista dos bens materiais essenciais pelo proletariado, sim. Mas para quê? Para a continuidade de um processo produtivo que é orientado pela lógica da destruição? É urgente reforçar o conceito de ecodesenvolvimento no debate da sustentabilidade e do neosocialismo. Qual socialismo que se quer? Um socialismo que privilegia o mesmo produtivismo?
      A realidade é que tecnologia e industrialismo são inexoráveis. Ninguém em sã consciência pode advogar pelo retorno às cavernas. O grande desafio ao movimento eco-socialista é pensar um modelo de desenvolvimento que considere as dimensões finitas dos recursos naturais existentes, que não seja modulado pela obsessão racionalista e produtivista que leva à opressão do corpo e da sexualidade, à destruição da biodiversidade e à morte dos valores culturais e espirituais mais íntimos.
      Por que, em síntese, não idealizar um pacto entre os recursos tecnológicos em desenvolvimento e o saber popular que historicamente tem possibilitado a manutenção da convivência de atividades produtivas necessárias à vida como acatamento ao equilíbrio/holismo ambiental? Os seringueiros do Acre consideram essa meta perfeitamente alcançável, e sustentam a potencialização do extrativismo, por intermédio da pesquisa, da aplicação de recursos tecnológicos à exploração dos produtos nativos.

O PEQUENO É MARAVILHOSO

      As premissas do ecodesenvolvimento vêm sendo observadas na prática por várias comunidades em diversas partes dos países biodiversos, e encontram respaldo teórico na obra de muitos pensadores ocidentais e orientais. De fato, linhas do ecodesenvolvimento vêm sendo apregoadas por alguns mentores do movimento ecológico internacional, sobretudo a partir da década de 1950. A apologia de um novo modelo de desenvolvimento, distinto dos cânones estritamente tecnológicos e industriais, foi feita por exemplo por E.F.Schumacher, autor de O Negócio é Ser Pequeno
(“Small is beautifull”), coletânea de vários artigos que ele publicou especialmente na imprensa britânica.
      Em um desses artigos, “Economia Budista”, originalmente publicado em 1966 – dois anos, portanto, antes da rebelião mundial de 1968 – Schumacher critica a formulação ocidental de trabalho e desenvolvimento, que ele detectava a partir de elementos da visão oriental de mundo e sociedade.
      Logo no início do artigo, Schumacher cita extratos do plano econômico e social do governo da Birmânia, datado de 1954. “A nova Birmânia não vê conflito entre valores religiosos e progresso econômico. Saúde espiritual e bem-estar material não são inimigas: são aliados naturais”, diz o plano do governo birmanês. E mais: “Podemos combinar com sucesso os valores religiosos e espirituais de nossa herança com os benefícios da tecnologia moderna” (E.F.Schumacher, O Negócio é Ser Pequeno, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977).
      Para Schumacher, a concepção budista de trabalho, que contrasta com a visão ocidental, é um dos elementos que apontam para um novo modelo de desenvolvimento: “O ponto de vista budista considera a função do trabalho como sendo no mínimo tríplice: dar a um homem a oportunidade de utilizar e desenvolver suas faculdades; possibilita-lo a superar seu egocentrismo unindo-se a outras pessoas em uma tarefa comum; e gerar os produtos e serviços necessários a uma existência digna” (E.F.Schumacher, op.cit.).
      Trata-se, é óbvio, de uma postura em relação ao trabalho totalmente antagônica à visão de trabalho do capitalismo puro, que orienta as aptidões do ser humano para a produção e consumo em massa, em detrimento do atendimento às reais necessidades do ser humano.
      Mas um novo modelo de desenvolvimento não significa automaticamente despreocupação com o plano material, como uma nova postura em relação ao trabalho poderia supor. O próprio Schumacher adverte para essa assertiva, ao observar que “o budismo é ‘o caminho do meio’ e, assim, de maneira alguma antagoniza o bem-estar físico. Não é a riqueza que atrapalha a libertação, porém, o apego à riqueza; não a fruição de coisas agradáveis, mas o desejo exagerado delas” (E.F.Schumacher, op.cit.).
      Schumacher completa, sintetizando algumas das linhas mestras de um ecodesenvolvimento, em sintonia com a Nanocultura: “A tônica da economia budista, portanto, é simplicidade e não violência. Sob o ponto de vista dum economista, a maravilha do estilo de vida budista é a racionalidade absoluta de seu modelo – meios espantosamente reduzidos levando a resultados extraordinariamente satisfatórios” (E.F.Schumacher, op.cit.).
      Em outras palavras, o modelo alternativo de desenvolvimento visualizado por Schumacher, inspirado na filosofia budista, é o da produção de acordo com as reais necessidades do ser humano. Na sociedade tecnocrática, falsas necessidades são fabricadas com apoio do aparato publicitário – a palavra de ordem é consumir, consumir cada vez mais, mesmo que sejam coisas supérfluas às reais necessidades humanas.
      A nova orientação do processo produtivo, nos termos do ecodesenvolvimento, levaria à redução do tempo de trabalho, o que por sua vez acarretaria um maior tempo dedicado ao lazer, à criatividade, ao prazer, ao amor e à sinergia com a natureza – não à sua destruição.
      O trabalho, no ecodesenvolvimento, pelo contrário, será exercido para o desenvolvimento das potencialidades humanas – o ser humano será pleno, e não esquartejado como o é pela estrutura da ordem tecnocrática. E a produção, destinada a satisfazer as necessidades básicas do ser humano, que terá todo o direito às coisas que tornam a vida bela e digna de ser vivida.

O QUE É A RIQUEZA DE UM PAÍS?

      O novo modelo de desenvolvimento alinhavado por Schumacher e outros visionários do movimento ecológico significa o questionamento radical da mania tecnocrática de medir a riqueza de uma nação pelo denominado Produto Interno Bruto (PIB). Em geral, um elevado PIB representa produção e consumo máximos, o que pressupõe exploração máxima da mão-de-obra e das energias humanas e, ainda, dos recursos naturais.
      Um PIB elevado geralmente significa devastação, poluição, stress, desespiritualização, exclusão social e aculturação igualmente elevados – esses “efeitos colaterais” não são levados em consideração nos indicadores oficiais de “riqueza”. Uma nação pode ter PIB elevadíssimo, mesmo que a situação real de seu povo não reflita os patamares atingidos pelo processo produtivo.
      O exemplo clássico desse modo tecnocrático de medir a riqueza de um país é o Brasil. Em 1990, quando ainda era considerado a oitava economia do mundo, o Brasil colocava-se em 80o lugar em termos de desenvolvimento humano, segundo os critérios da ONU. Em 2002, quando a economia brasileira estava entre as quinze maiores, o país situou-se na 72a colocação do ranking de desenvolvimento humano. A ONU considera esse novo critério para medir a riqueza de uma nação – o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que leva a situação do povo de cada país em termos de educação, saneamento básico, distribuição de renda e saúde.
      Essa nova forma de medir a riqueza de um país, sugerida pela ONU, é muito próxima da taxa de Felicidade Nacional Bruta proposta no início dos anos 70 por Jean-Jacques Servan-Schreiber, e embasada nas formulações de Schumacher e outros profetas do movimento ecológico. O ecodesenvolvimento tem sido objeto de vários livros de Ignacy Sachs, como Stratégies de l‘écodéveloppment (Toulouse, Privat, 1981).
      O brasileiro Josué de Castro, autor do clássico Geografia da Fome, é outro dos pioneiros na elaboração de um novo modelo de desenvolvimento. No artigo “O subdesenvolvimento é o problema número um da poluição”, publicado no Correio da Unesco, de janeiro de 1973, assinalava que
      “o Terceiro Mundo vive sob ameaça permanente da instalação imediata de tipos de desenvolvimento tecnológico que não levam em conta a dimensão ecológica e que poderão, portanto, causar a desintegração total das estruturas ecológicas. E se considerarmos a fragilidade relativa de certos ecossistemas equatoriais e tropicais, onde a maior parte do Terceiro Mundo se encontra situado, o perigo afigura-se-nos ainda maior”.
      As palavras de Josué de Castro não poderiam ser sido mais proféticas – o modelo de desenvolvimento implementado nos anos 70 e 80, em boa parte dos países biodiversos, muitos deles sob regimes ditatoriais, seguiu a concepção ocidental de desenvolvimento, ao privilegiar o processo produtivo orientado para o hiperconsumo, em detrimento do equilíbrio ambiental e da própria situação social e cultural de seus povos. Nos anos 90 o processo se dilatou.
      De novo o Brasil é um mau exemplo, após ter vivido a euforia desenvolvimentista dos governos militares, tornando-se a oitava economia do mundo. Em compensação (?), os indicadores sociais permaneceram estacionados e, depois, quando a economia brasileira retraiu, a situação social ficou ainda mais grave. E pior: a economia brasileira caiu, enquanto a dilapidação dos recursos naturais avançou  basta citar o desmatamento da Amazônia, essa impressionante reserva de biodiversidade – mais de 15% da floresta estavam destruídos no início do século 21.
      Castro assinalava em seu artigo que “a tecnologia em si mesma não é boa nem má. A sua aplicação é que lhe confere um sentido ético. Se a tecnologia tem trabalhado contra o Terceiro Mundo é porque que tem sido usada com um fim em vista, o máximo de vantagens e lucros”. E é enfático ao salientar que “é a exploração do neocolonialismo que tem levado estes países ao seu estado atual de desespero, agravado agora pela ameaça recente de paragem do pequeno grau de progresso que conseguiram nas últimas décadas”.
      A postura de Castro é coerente com boa parcela do movimento ecodesenvolvimentista, que não deseja a estagnação industrial ou do crescimento econômico dos países biodiversos. O que se pede é que os próprios países biodiversos engendrem seus modelos de desenvolvimento, a partir das realidades e da cultura locais. E esse modelo de desenvolvimento aponta para uma autonomia, uma proatividade dos países biodiversos, que investiriam alto em suas tecnologias e em sua ciência – tudo isso apontando para uma redução da dependência dos países altamente industrializados.
      Na época, Josué de Castro sinalizava uma identidade com o ambiente geral do início da década de 1970, favorável a uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI). De certo modo a luta pela NOEI permanece, nos marcos por exemplo do combate ao endividamento externo que continua sufocando as economias e a qualidade de vida dos países biodiversos. Entretanto, a interação entre os países, no marco da globalização, é inevitável e irá se aprofundar no século 21.
      A questão é saber em que grau essa globalização, ditada pelos avanços tecnológicos e de comunicação, não irá aprofundar a dependência e dificultar a autonomia dos países biodiversos. Os termos de troca do comércio internacional são justos para os países biodiversos? Os subsídios praticados pelos países industrializados não são uma contradição com o seu discurso de livre mercado? E o comércio internacional, inevitável com a globalização, levará em conta os custos ambientais e sociais embutidos nos produtos exportados pelos países biodiversos?  São todos itens de um grande debate que deve ser travado, na linha de construção de um novo modelo de desenvolvimento e de uma nova forma de se medir a riqueza de um país.
      As posturas de Josué de Castro são claramente de uma pessoa comprometida com a realidade e as aspirações dos países biodiversos. Mas é fundamental que se lembre que a sua terminologia, por exemplo quando fala de “Terceiro Mundo”, ainda espelha a maneira eurocêntrica de ver o planeta – uma maneira cada vez mais norteamericanocêntrica, é verdade...
      Como já salientei, por vários critérios o Brasil – de novo o Brasil – por exemplo, por essa ótica de divisão entre Primeiro e Terceiro Mundos, poderia ser claramente considerado um país de Primeiro Mundo. Basta lembrar que o Brasil tem 12% da água doce do planeta, a maior floresta tropical etc...
      Nesse sentido, para mim o Brasil definitivamente não é de Terceiro Mundo. E se estamos falando em ecodesenvolvimento, essa maneira de medir a riqueza de um país pelo PIB deve ser recusada. E mesmo quando se fala em IDH é preciso muito cuidado, em minha opinião: falar que o Brasil tem uma dívida social com o seu povo é verdade. Mas é preciso deixar claro que isso não significa que o povo brasileiro – e os povos dos países biodiversos em geral – não tenham seus próprios saberes, a sua própria riqueza cultural. O grau de solidariedade entre os brasileiros – e muitos povos de várias partes do mundo, com certeza – é muito grande, apesar de tudo, e esse valor não é considerado pelo IDH tradicional.
      O fato é que, por motivos vários, nos países biodiversos ainda há uma alegria de viver, uma solidariedade, um desprendimento com as coisas materiais que não foram destruídos pelo individualismo, o materialismo, a desespiritualização da ordem tecnocrática. É neste contexto que ecoa o ecodesenvolvimento, de respeito e uso sustentável da biodiversidade natural e cultural local, de empoderamento das comunidades, de aplicação das tecnologias em respeito às realidades locais, de energias alternativas.


Coletores de energia solar se espalham por todas as partes: sinais de uma nova sociedade?

      A busca de energias alternativas, ou brandas, ou limpas, é um dos pilares do ecodesenvolvimento. As energias limpas não são concentradas como na Era do Combustível fóssil. Serão descentralizadas, de fato democratizadas. A energia solar e a energia eólica são símbolos perfeitos. A energia do hidrogênio também aponta para a descentralização. Enfim uma nova sociedade exige nova energia.                       

CAPÍTULO V

ECOPACIFISMO: PELA TOLERÂNCIA

      A sociedade eco-socialista, típica das Ecocidades, será pacífica porque regida por um novo conceito de segurança. Não mais a segurança dos mísseis nucleares, dos esquadrões da morte, da tortura, do racismo e da pena de morte. Mas a segurança da igualdade social, da tolerância, da confiança.
      A sociedade ecopacifista será diferente. O outro não será estigmatizado porque é o outro. As diferenças de ordem cultural, religiosa e de pensamento serão toleradas, respeitadas e cultivadas. Não haverá mais guerras localizadas como a do Iraque, porque a sociedade solar será movida por recursos energéticos descentralizados, e não concentrados em poucas mãos. A sociedade ecopacifista terá células e redes de solidariedade.

PREMISSAS DO ECOPACIFISMO

      É possível a paz com a guerra? Os donos do poder têm respondido “sim” a essa indagação através dos tempos. O resultado foi o que se viu: a humanidade próxima de sua autodestruição, no período da corrida armamentista nuclear liderada por EUA e União Soviética. A natureza também sentiu os efeitos da guerra, profundamente antiecológica. Basta citar os desfolhantes químicos usados na Guerra do Vietnã: os famosos agentes-laranja. A guerra é terrorismo contra a natureza, disse Marcuse em debate na França.
       Contra máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios, personalidades da luta libertária têm advogado o uso da não-violência. O movimento anabatista, na Alemanha do início do século 16, foi pacifista.
      Mais tarde a participação dos operários nas guerras mundiais, causadas pelos interesses das grandes potências, foi duramente criticada por duas mulheres: Emma Goldman e Rosa Luxemburgo. Suas vozes foram proféticas, e o fim das duas grandes guerras não trouxe imediatamente a paz universal.


Campo de concentração de Dachau, Alemanha: um dos ícones maiores do horror, da sociedade militarizada

      Pelo contrário, os conflitos bélicos continuaram. Entre 1946 e 1989, ano da queda do Muro de Berlim, foram 127 guerras localizadas, com 22 milhões de mortos. A maioria das conflagrações foi nos países biodiversos, e 70% das mortes aconteceram na Ásia. Em 1987, a dois anos do início da derrocada do socialismo real, foram registradas 27 guerras. Maior número desde 1945.
      A maioria das guerras tem sido provocada por três fatores: luta pelo controle dos recursos naturais, intolerância política, cultural e religiosa e manutenção da miséria de muitos para preservar a riqueza de poucos. O tripé das guerras continua, infelizmente, vigorando no início do século 21. Mas para superar esse estado bélico por excelência é essencial sepultar de vez o conceito de que a guerra é o único meio de resolver conflitos de grandes proporções. Esse princípio é ainda mais necessário no momento em que a “guerra ao terror”  ameaça dominar a agenda geopolítica global.
      O exemplo clássico de que a não-violência pode ser uma arma eficaz contra a opressão foram as campanhas de desobediência civil lideradas por Gandhi na Índia, para libertar seu país do domínio inglês. Gandhi inspirou-se no pensamento e na postura de pessoas como Henry David Thoreau (1817-1862), considerado um dos pais do ecologismo e do pacifismo modernos. Thoreau recusou-se a pagar os impostos, porque era contra a guerra que os EUA promoviam contra o México e também criticava o massacre dos indígenas. Por sua desobediência civil – título de seu famoso ensaio – Thoreau foi preso. Ele preferia uma vida simples, e passou grande parte dela no campo.
      Casos de rebeliões pacíficas ocorreram no campo capitalista e no âmbito do “socialismo real”, como a Revolução do Veludo na Tchecoslováquia. A rebelião estudantil em 1968 foi, em grande parte, motivada pela crítica à Guerra do Vietnã. Foi a Grande Recusa, de que falava Marcuse.
      No cenário doloroso pós-11 de setembro de 2001, é cada vez mais estratégico advogar e propagar a defesa da não-violência e da tolerância como meio de resolução de conflitos. Outra premissa ecopacifista é a conversão da indústria bélica para fins civis. O dinheiro gasto na corrida armamentista, retomada depois de 11 de setembro de 2001, poderia equacionar todos os dramas globais com a fome e a destruição ambiental.
      Segundo a organização sueca SIPRI a África foi a segunda região com maior evolução de gastos militares entre 1993 e 2002, de US$ 7,4 bilhões para US$ 9,6 bilhões (+30%). Só perdeu para Oriente Médio, com salto de US$ 53,5 bi para US$ 73,8 bi em 2001 (+38%). A América do Sul teve subida no período, de US$ 17,6 bi para US$ 21,1 bi (+ 20%).


Apelo pela paz em Assis, na Itália: mensagem de São Francisco é muito atual
      Na Consulta sobre Justiça, Paz e Integridade da Criação, promovida pelo Conselho Mundial de Igrejas em Seul, Coréia do Sul, em março de 1990, um dos pactos firmados pelas Igrejas cristãs foi o se empenharem contra o militarismo e pelo apoio à não-violência como resolução de conflitos. Foi importante estímulo à caminhada ecopacifista, no qual o conceito de segurança da corrida armamentista será substituído pelo conceito de segurança da justiça social, da integridade da Biosfera, do ecumenismo, da valorização da biodiversidade étnica e cultural, da tolerância. Será o conceito e segurança de uma sociedade plural, descentralizada, ecumênica, justa ecológica, erotizada e, portanto, pacífica. E tudo isso começa no local, como marco da Era da Nanocultura.            
                           
CAPÍTULO VI

ECOCIDADES NA ERA DA NANOCULTURA

      Plasmônica. O nome pertence ao cada vez mais produtivo e abrangente campo da Nanociência, a ciência do pequeníssimo, do mais do que microscópico. A Plasmônica evolui a partir de uma notável descoberta alcançada por experimentos realizados no Instituto de Pesquisas NEC, localizado em Princeton, Nova Jersey, Estados Unidos, e ilustra perfeitamente como a Nanocultura é um dos principais sintomas da grande transformação global em curso neste início do século 21, e que pode apontar para uma nova civilização, consagrada pela construção de Ecocidades.
      Ensaios no Instituto NEC, com a participação decisiva de cientistas como Thomas Ebbesen e Peter Wolf, evoluíram para a confecção de uma pequena lâmina de ouro, com 100 milhões de furos simétricos, cada um deles com a largura de inimagináveis 300 nanômetros. O fantástico é que raios de luz, projetados sobre essa lâmina de ouro, tornam-se mais fortes depois de atravessar os microfuros do que quando chegam a eles. 
      Os futuros efeitos da Plasmônica tendem a ser revolucionários. “Dentro em breve poderemos estar utilizando a superfície de metais para deslocar informações à velocidade da luz por circuitos eletrônicos que não medem mais do que alguns átomos de largura”, comenta Bruce Schechter, no artigo da “New Scientist” (reproduzido no suplemento “Mais” da Folha de São Paulo de 29 de junho de 2003, páginas 16-17) que descreve os experimentos realizados no Instituto NEC, e que foram dados a conhecer para a comunidade científica internacional em um artigo de Thomas Ebbesen e Peter Wolf para a revista “Nature”, em 1998.
      Assim Bruce Schechter relata o fenômeno: “De acordo com a teoria óptica, com 300 nanômetros de largura, os furos são tão pequenos que deveriam deixar passar apenas 0,01% da luz visível que incide diretamente sobre eles. Mas o experimento de Ebbesen sugere que estavam transmitindo mais de 100%. De alguma maneira o metal estava atuando como funil, canalizando toda a luz que atingia a folha”.
      Pela minha leitura, os experimentos conduzidos no Instituto de Princeton são mais do que simbólicos sobre como o pequeno, o pequeníssimo, é cada vez mais importante na esfera da Nanocultura – juntos, milhões de microfuros conseguem aumentar o brilho da luz original. Creio que é uma bela metáfora, sobre como a soma de pequenos, pequeníssimos, pode resultar em algo imenso, luminoso, brilhante.
      A Nanocultura é a emergência do pequeno. No cenário da globalização, do macro, a Nanocultura é a força sistemática alcançada pelo local, pelo micro. Não às grandes estruturas, geralmente efêmeras, e sim ao que é simples, geralmente perene.
      É paradoxal que a Nanocultura tenha perfeita correspondência com o que  ocorrendo com a Ciência e Tecnologia, acentuadamente voltados para o pequeníssimo, o microscópico. Não mais para isolar, separar o pequeno – como a divisão do átomo que legou um aparato de armas nucleares que pode destruir o planeta milhares de vezes, como se fosse possível (basta uma...)
      A Nanocultura no campo científico é identificar o pequeno em aliança com outro pequeno, como a soma dos pequenos torna algo único diferente, especial. O código genético, decifrado pelo Projeto Genoma e outras iniciativas, é traduzido como uma seqüência infindável de números – que conformam, quando somados, a identidade de uma espécie, animal ou vegetal.
      Uma nova ciência está refletindo à perfeição, em suma, uma nova cultura, a Nanocultura, que projeta o parto, doloroso como todos os partos, de uma nova civilização planetária. A civilização ecológica, traduzida em Ecocidades, de solidariedade, de tolerância, de respeito à biodiversidade biológica, étnica e cultural, de não-violência e de protagonismo ativo dos diversos grupos sociais.      Cinco rápidos exemplos que podem ser computados na Nanocultura:
·       O DNA humano, código genético constituído por 40 mil genes, formados por seqüências de 3,1 bilhões de bases químicas, foi decifrado justamente na transição dos séculos 20 e 21 – o século da Nanocultura. O anúncio dos resultados do Projeto Genoma Humano, viabilizado por um consórcio internacional de pesquisadores, e pela corporação concorrente Celera aconteceu em junho de 2000.
·       Avanços na tecnologia de satélites têm permitido ler com impressionante riqueza de detalhes áreas extensas, o que auxilia por exemplo na radiografia de territórios sujeitos a desmatamento como a Amazônia. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), localizado em São José dos Campos (SP) e que há anos faz o mapeamento por sensoriamento remoto das queimadas na Amazônia, desenvolveu um software que viabiliza a confecção de mapas com enorme detalhamento. O software foi utilizado para a elaboração do Atlas da Mata Atlântica, divulgado em 2004 pela Fundação SOS Mata Atlântica e o próprio INPE.
·       Novíssimos estudos indicam que o Modelo Padrão da física moderna, constituído basicamente por seis partículas elementares (elétron, quark up, quark down, glúon, fóton e bóson de Higgs), tende a ser alterado em muito breve, pela descoberta de novas partículas. A conseqüência é que as teorias de constituição da matéria serão reformuladas. De novo o infinitamente pequeno surpreende e encanta.
·       As tecnologias que permitem os organismos geneticamente modificados, a partir de operações em escala igualmente microscópica, também surpreendem em escala crescente – e assustam. Qual o limite ético da manipulação humana sobre a natureza?     
·        O ressurgimento de – ou a eclosão de novas, como a AIDS – pandemias globais ratifica o poder devastador de organismos microscópicos, como vírus e bactérias. Quão o ser humano está disposto em investir para compreender, e principalmente combater e erradicar, o comportamento e a difusão desses microorganismos, no lugar de aplicar bilhões de dólares na corrida armamentista? As pandemias globais são a mais cruel indicação, e o mais cristalino aviso, da necessidade de se olhar para o pequeno, o quase invisível.

      Os olhares da Ciência mais e mais voltam-se para o pequeno, o infinitesimal. E com isso a própria Ciência se modifica, se reprocessa, abrindo novas possibilidades, positivas ou muito assustadoras. De qualquer modo é um sintoma cristalino da emergência da Nanocultura, que no campo sociológico se reflete na emergência do local, da comunidade local, como espaço privilegiado para a crítica dos paradigmas da sociedade tecnocrática e exercício de nova cultura, apontando para nova civilização – a civilização ecológica, materializada em Ecocidades. Ou eco-socialista, quem sabe.
      A Agenda 21 Local, ao trazer os grandes debates fundamentais para a humanidade ao âmbito do local, da comunidade, acompanha a tendência da Nanocultura e indica múltiplos potenciais. O potencial de unir o que a Ciência cartesiana separou – e com a nova Ciência pode produzir algo novo, um modelo de desenvolvimento novo, de conhecer para proteger a biodiversidade. O potencial de aproximar natureza e cultura. O potencial de promover a inclusão social, e de subverter a arquitetura tradicionalmente excludente das cidades funcionais da sociedade tecnocrática – cidades que, voltadas para o produtivismo, não foram pensadas e construídas por exemplo para os portadores de deficiência e necessidades especiais. O potencial de promover cada vez mais o necessário olhar feminino e o protagonismo de crianças, adolescentes e idosos – igualmente, grupos sociais tradicionalmente excluídos porque “improdutivos”. E por aí vai. A Agenda 21 Local, fundada na Ecopolítica do Amor, no Ecodesenvolvimento, no Ecofeminismo e no Ecopacifismo, pode ser, enfim, excelente instrumento até a nova civilização. Para isso, é preciso ter um novo olhar, uma nova perspectiva sobre as cidades e seus condicionantes.

PODER MICROSCÓPICO E AS CIDADES

      O poder está disseminado pelas sociedades, está entranhado nelas, não é algo externo. Portanto em qualquer lugar das sociedades o poder se manifesta. Na definição de Foucault é a microfísica do poder, e daí a necessidade de enfrentá-lo nessa esfera microscópica.
     As cidades são o espaço privilegiado para o questionamento do poder que se espalha como um câncer pelo corpo social. O poder não está em um Estado distante das cidades, ele pulsa nas ruas, nas vielas e esquinas das cidades.
     O poder está nas relações sociais, está na mídia, nas instituições, está na cultura. Construir uma nova cultura, para uma nova civilização, implica em questionar esse poder totalizante e globalizante que não vemos mas nos controla, ao deixar sua marca hereditária nas células dos organismos físicos, sociais e culturais. O poder está no local. Portanto é preciso agir no local.

PODER MICROSCÓPICO E O CORPO


     O poder está no corpo. Foucault: “O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política” (Michel Foucault, Edições Graal, São Paulo, 18a edição, 2003, página 80 ).
      No Brasil Fernando Gabeira introduziu a política do corpo. A libertação começa pela libertação do corpo, a liberdade de escolher – com responsabilidade – o que comer, o que ler, o que assistir.  

                             MARXISMO, ECOLOGIA, ANARQUISMO


     A análise marxista clássica é insuficiente para dissecar esse poder poliédrico, presente nas diferentes esferas sociais e biológicas, pois privilegia o poder na dimensão dos aparelhos de Estado e das relações de classe. O marxismo está limitado à reflexão crítica sobre as relações sociais, não dá conta do poder da cultura e da sociedade sobre a natureza, e nem do homem sobre a mulher, ou do jovem sobre o velho, ou do... Como dará conta do poder que o homem tem de fazer uma nova natureza geneticamente modificada, ou da cultura adstrita à inteligência artificial e à manipulação midiática?
      O marxismo enfatiza o determinismo econômico. Foi fundamental na análise da natureza do capitalismo em sua dimensão econômica, com noções como a luta de classes, a mais valia, o exército industrial de reserva. Nem poderia ser diferente, considerando que os fundamentos teóricos foram concebidos no contexto do florescimento da exploração do operariado europeu e, em especial, da Inglaterra, onde Marx viveu tanto tempo. Novamente, como ocorreu com a eclosão do pensamento racional na polis grega, um novo pensamento, crítico, foi parido no ventre do capitalismo industrial. O marxismo foi nesse sentido essencial, como corpo teórico, a revoluções e movimentos de libertação nacional em vários países, entre os séculos 19 e 20.  
     A hegemonia marxista na ciência política, econômica e social durante tanto tempo contribuiu para segregar e/ou atrasar a emergência de outras modalidades de pensamento, de outros instrumentos de análise, que incorporassem por exemplo os impactos ambientais do capitalismo, ou a exploração de gênero, etnia etc. Isto porque a cultura e outras dimensões ficaram no plano da superestrutura, determinada pelas condições econômicas, pelo modo de produção de uma sociedade.
     Mas o domínio do marxismo nos bancos universitários e lutas sociais, durante tanto tempo, também colaborou para marginalizar e/ou frear a emergência de outras correntes de pensamento na área das relações sociais e políticas, como as correntes libertárias do anarquismo.
      O anarquismo pressupõe princípios como a descentralização, o mutualismo, a crítica à hierarquia, que são em essência antagônicos da disciplina marxista. Nesta linha o anarquismo é mais próximo do ecologismo do que o marxismo clássico. A crítica à hierarquização da natureza e da sociedade é um dos pilares da ecologia social de Murray Bockhim.
      Com a queda do Muro de Berlim e a crise profunda do marxismo e do chamado socialismo real, estão abertas as portas para o resgate do legado anarquista e seus instrumentos de análise e, sobretudo, de ação. Os princípios da descentralização, da não-hierarquização, do mutualismo estão livres para bailar. Uma nova sociedade, uma nova civilização, passa a ser novamente irrigada pela utopia anarquista, e isso é essencial para nanocultura, para a era ecológica. A Agenda 21 Local, na busca de quebra de paradigmas, deve considerar as propostas anarquistas no desenho de uma nova cidade, mais humana, mais justa, mais respeitadora dos recursos naturais, mais tolerante com a diversidade de idéias, culturas, religiões etc.
      O marxismo – que deu grande contribuição em várias áreas – ajudou a engessar o pensamento socialista durante décadas. A Universidade priorizou a ótica marxista e isso levou ao esquecimento, à marginalização, do legado anarquista. Poucos estudos acadêmicos foram produzidos sobre a importante influência do anarquismo nos momentos inaugurais do sindicalismo brasileiro. A queda do Muro de Berlim propicia a erupção de novas formas de pensar e o resgate do legado anarquista.

CENTRALIZAÇÃO X DESCENTRALIZAÇÃO


       De novo Foucault, na interpretação de Roberto Machado, no prefácio à Microfísica do Poder (op.cit. página XII): “O importante é que as análises indicaram claramente que os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado. Não são necessariamente criados pelo Estado, nem, se nasceram fora dele, foram inevitavelmente reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho central”.
      De qualquer modo, os aparelhos de Estado centralizados sugam as energias de duas células. Brasília, a cidade corbusiana por excelência, suga as energias dos Estados e, principalmente, das cidades brasileiras. Não é possível uma reformulação das cidades brasileiras sem criticar esse parasitismo.
      A Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, apontou para a municipalização, para o trato dos assuntos do cidadão no âmbito municipal. Mas não previu os mecanismos para garantir os recursos que viabilizassem essa municipalização. Os recursos derivados do exercício fiscal vão, em sua grande maioria, para Brasília. É preciso pensar sobre essa centralização. O fortalecimento do local vai sedimentar os movimentos que levarão ao questionamento do poder central de Brasília. Agenda 21 Local é novamente estratégica nesse sentido. Não adianta falar de municipalização se os recursos fiscais ainda são, em sua grande maioria, irrigados para governos centrais.

REPRESSÃO X NOVAS FORMAS DE CONTROLE


      O poder não sobrevive pela repressão. Ele cria fórmulas e métodos mais sofisticados de controle. De novo na análise de Roberto Machado, sobre a Microfísica do Poder de Foucault: “O que lhe interessa (ao poder) basicamente não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controla-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades” (op.cit., página XVI).
       O poder não é só repressão, mas produz prazer e saber, por isso é eficaz (Foucault, op.cit.,página 8). A URSS só reprimia, por isso não foi eficaz.
      O poder, para Foucault, é um poder sobre o corpo, e portanto um poder disciplinar. Para ser exercido, é em primeiro lugar um poder sobre o espaço. “É uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório” (Roberto Machado, in op.cit, página XVII).
      Em segundo lugar, um poder sobre o tempo. “Isto é, ela (a disciplina) estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia” (Roberto Machado, in op.cit, páginas XVII-XVIII). E em terceiro, a vigilância, “um de seus principais instrumentos de controle” (XVIII). “Olhar invisível – como o do Panopticon de Benthan, que permite ver tudo permanentemente sem ser visto – que deve impregnar quem é vigiado e tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem o olha” (Roberto Machado, in op.cit., página XVIII).
      O século XXI pode ser o século da vigilância suprema. Câmeras por todos os lados, satélites controlando cada movimento, cada passo, cada intenção. É preciso discutir isso, a invasão da privacidade pelas câmeras ou pela Internet.

NOVA CIÊNCIA, NOVO INTELECTUAL


      Construir uma nova Ciência, não-fragmentária, exige um novo intelectual. Superar o intelectual específico, que vigorou pós 2a Guerra Mundial. “A biologia e a física foram, de maneira privilegiada, as zonas de formação deste novo personagem, o intelectual específico” (Foucault, op.cit, página 11). “Historicamente, Darwin representa o ponto de inflexão na história do intelectual ocidental (deste ponto de vista, Zola é muito significativo: é o tipo de intelectual ‘universal’, portador da lei e militante da eqüidade; mas alimenta seu discurso com uma referência nosológica, evolucionista, que acredita ser científica e que, inclusive, domina muito mal, cujos efeitos políticos sobre seu próprio discurso são bastante ambíguos). Se se estudasse isto de perto, seria possível ver como os físicos, na virada do século, entraram no debate político. Os debates entre os teóricos do socialismo e os teóricos da relatividade foram capitais nesta história” (Foucault, op.cit., página 11).  
      Curiosamente, a biologia e a física estão contribuindo para o resgate do intelectual universal. O saber, a ciência, são práticas sociais e culturais, não são isentas, estão impregnadas pelo contexto e pelo legado cultural de onde saem. A Agenda 21 Local, multidimensional, que gera uma nova prática social, gera uma nova cultura, um novo saber, uma nova ciência.  

UTOPIAS NUNCA FORAM COMPLETAS


      É preciso lembrar que as grandes referências históricas de democracia e/ou sociedades utópicas nunca foram, na prática, totalmente as ideais. A utopia gerada pela eclosão e fortalecimento das Agendas 21 Locais também não.     
      A democracia grega estava reservada aos proprietários – homens – de terras. Estavam excluídos da política os não-proprietários, as mulheres e os escravos, que formavam de um terço a metade da população em certos períodos. Sob Sólon houve mudanças. “E se não é correto considera-lo, como aconteceu mais tarde, como o fundador da democracia ateniense, a verdade é que daí em diante todos os Atenienses passaram a ser iguais aos olhos da lei. E embora ainda não fossem ‘cidadãos’, já eram homens livres” (Claude Mossé, O Cidadão na Grécia Antiga, Edições 70, Lisboa, 1999, pág.20)

O FUTURO DA AGENDA 21 LOCAL


      Um dia o momento da Agenda 21 Local vai passar. Mas as idéias que a motivaram não. As grandes idéias sempre permaneceram. A Revolução Francesa ainda fornece frutos dois séculos depois. No Brasil, fala-se muito como a cidadania da infância e da juventude – a consciência de que crianças e adolescentes nascem iguais em direitos, princípio central que alimentou a revolução Francesa – apenas foi alcançada após o ECA, de 1990. No Brasil mesmo novos estudos recuperaram o sentido da Inconfidência Mineira, que se não foi vitoriosa imediatamente, acabou sendo ao longo do tempo.       O mesmo com a Agenda 21. Se a Agenda 21 global não foi observada nos primeiros anos, ela continuará gerando frutos por muito tempo. Um deles é a Agenda 21 Local, que igualmente vai permanecer como idéia, vitoriosa, por muito tempo no século 21.



CAPÍTULO VII

NOVOS PARADIGMAS CULTURAIS E ESPIRITUAIS,
PARA UMA ECOCIVILIZAÇÃO DE ECOCIDADES

      Está claro que o objetivo primordial da Agenda 21 Local é potencializar a construção e o enraizamento de novos paradigmas, questionando-se os velhos paradigmas, muitos deles já, creio, suficientemente comentados.
     Sete desafios centrais, creio, devem ser enfrentados e equacionados, se queremos ver reformulados os paradigmas que têm caracterizado a sociedade tecnocrática ocidental.
      Os desafios são:
1.     Construir uma ECOFILOSOFIA.
2.     Aproximar o Ocidente da contribuição do ORIENTE e de outras tradições culturais existentes no próprio cenário da sociedade ocidental.
3.     Reformular os MITOS PRIMORDIAIS da aventura humana.
4.     Potencializar o desejo universal de REVERÊNCIA À MÃE TERRA.
5.     Superar o mito da SOCIEDADE SACRIFICIAL.
6.     Superar o fascínio do APOCALIPSE E DA QUEDA.
7.     Construir e/ou resgatar uma NOVA ESTÉTICA.

CONSTRUINDO A ECOFILOSOFIA

      A filosofia – produto humano – nasce na Grécia a partir da dialética, como uma evolução do pensamento mítico. O labirinto construído por Dédalo é a metáfora da razão humana, o “logos”, idealizado pela divindade para confundir o homem, mas a vitória de Teseu sobre o Minotauro (para muitos comparado ao deus Dionísio) é interpretada como o sinal do advento do pensamento racional e analítico – portanto humano – contra o mundo mitológico, dominado pelos deuses.
      Nas palavras de Giorgio Colli: “Como arquétipo, como fenómeno primordial, el Laberinto no pude prefigurar outra cosa que el ‘logos’, la razón. Qué outra cosa, sino el ‘logos’, es um producto del hombre, en que el hombre se pierde, se arruina? El dios ha hecho construir el Laberinto para doblegar ao hombre, para devolverlo a la animalidad: pero Teseo utilizará el Laberinto y el dominio sobre el Laberinto que le ofrece la mujer-diosa (Ariadne) para vencer al animal-dios”. (Giorgio Collli, El Nacimento De La Filosofia,  Tusquets Editora, Barcelona, 2000, página 30).
      A filosofia grega, como prolongamento do pensamento mítico, bebeu de muitas fontes típicas e próximas dos mitos, e também de fatos naturais muito próximos da vida do cidadão grego, esse ser encharcado de mar.
      Se na tradição bíblica no princípio era o Verbo, o Logos grego foi, com efeito, forjado no estreito contato de seu povo com a água. Impossível, para os filhos de Sócrates, Platão e Aristóteles, filosofar sem pensar nela, a água que prendia e libertava atenienses, espartanos e demais gregos de suas milhares de ilhas. Uma das imagens filosóficas mais belas, a de Heráclito para ilustrar o eterno fluir da Vida, só poderia ter conexão com o elemento primário: não se pode banhar duas vezes nas mesmas águas do rio.
      No princípio era a água. O fascínio exercido pela água, o grande tema ambiental do século 21, tem a idade da Terra. A água é o berço, é o jorro e a abundância de vida, antítese de tudo o que representa a falta, a ausência. Não há solidão na água, contato primeiro do ser humano com a vida. Se nascemos envoltos em água, da água teríamos de nascer como comunidade humana. Se nos sentimos tão bem na água, a ponto de até nadarmos sem saber como, é porque ela é o elemento primal, aquele com o qual mais nos identificamos.       Em suas viagens a Marte, a sonda européia Mars Express e o robô norteamericano Opportunity foram à busca de ... água, o atestado de que em algum momento, quem sabe, teria havido vida no planeta vermelho. Pois água é vida, a vida é água.  
    Sendo assim é natural que a filosofia, tal como é conhecida e reconhecida, tenha nascido de uma reflexão sobre o primeiro elemento, a fonte da vida, que apenas poderia ser a água. Este é o principal legado de Tales de Mileto, aquele que é apontado pelos especialistas como o primeiro filósofo.
      O pensador que viveu aproximadamente entre os séculos 7 e 6 AC na cidade de Mileto, capital da Jônia, ponto de partida para a poderosa civilização helênica, consagrou a água como a fonte de tudo o que é vida. Do ciclo da água, que, hoje sabemos, mantém a vida no planeta, se originam as espécies animais e vegetais. A natureza, denominada pelos gregos como physis, é enfim projetada e modelada a partir da água, nos diz Tales de Mileto, o primeiro filósofo a buscar um princípio único para o mundo tal como o conhecemos e vivenciamos.
  A filosofia grega, mãe da filosofia ocidental, nasceu então embebida em água – mas também embebida nos outros elementos considerados primordiais, como o ar em Anaxímenes ou todos os quatro elementos (terra, fogo, água e ar) em Empédocles.
      Mas a filosofia ocidental foi se afastando desse contato, digamos, telúrico, com os elementos primordiais da vida. Foi se tornando mais e mais abstrata. Sócrates gostava de repetir que as árvores e a relva não lhe ensinavam nada, daí preferir ficar na cidade, conversando com as pessoas. O pensamento, o logos, mais e mais passou a ser mediado pela razão, pela idéia platônica, e não pelos sentidos aristotélicos.
      Uma Ecofilosofia, essencial para a construção da Ecocivilização, necessita desse diálogo com a vida mesma, a vida toda, de seres humanos e das demais espécies de vida, e com a participação importante de todos os sentidos humanos, na linha de um corpo totalmente erotizado – pensar e sentir com o corpo e o coração, não apenas com a razão.
      O Ocidente perdeu excelentes oportunidades de forjar uma Ecofilosofia – o que significaria, talvez, a construção de uma sociedade diferente do que a que tivemos – ao ter excluído, marginalizado, contribuições como a de um Spinoza, no século que consolidou a ciência cartesiana. Deus, os homens e a natureza, para Spinoza,compartilham de uma mesma substância. Isto porque, para Spinoza, Deus não é transcendente, não está fora do mundo.
      Ora, se a natureza e o ser humano são sagrados, a sociedade deveria respeitar essa condição, o que pressupõe uma ética diferenciada, uma postura totalmente diversa do que o Ocidente cultivou em relação ao ser humano e à natureza. Esse pensamento de Spinoza é o que se chama de panteísmo, também próximo de pensadores cristãos como Giordano Bruno – que por suas idéias consideradas heréticas morreu na fogueira da Inquisição. 
      Mesmo no momento de emergência e auge do Romantismo, no final do século 19, o Ocidente poderia ter assimilado e internalizado o que ele tinha de defesa de uma vida mais livre e reverente com relação à natureza. Mas os românticos tornaram-se apenas sinônimos de sonhadores, de pessoas imbuídas de boa vontade, mas totalmente distantes da realidade. 
      O nascimento da filosofia grega, ou do pensamento ocidental, é  atribuído às poderosas forças e energias históricas que juntaram-se naquele momento, naquela porção de ilhas, entre os séculos 6 e 4 Antes de Cristo. No momento de uma grande revolução científica e tecnológica em curso, e da emergência de uma Nanocultura como sintoma de uma Ecocivilização, uma Ecofilosofia pode estar sendo gestada nas ruas das conturbadas cidades do século 21. Necessariamente será uma Ecofilosofia baseada na idéia de aproximação de natura e cultura, presente em muitas tradições culturais que o Ocidente excluiu ao longo dos tempos. 
      Ensaios de uma Ecofilosofia têm sido dados, desde a década de 1970, de modo concomitante à eclosão do Ecofeminismo e outras correntes. “A ecofilosofia pretende incluir considerações que não pertençam somente à esfera da ética, mas também às esferas da metafísica, epistemologia, filosofia social e política. Filosofia é um termo mais abrangente do que ética, o que explica o uso da denominação de ecofilosofia. O pensamento ecofilosófico tornou-se mais vigoroso no final da década de 70, ganhando status e sendo institucionalizado na filosofia contemporânea com a publicação da revista Environmental Ethics,  de reconhecido interesse, consistência e qualidade. Essa foi a primeira publicação profissional e acadêmica voltada exclusivamente para os aspectos filosóficos dos problemas ambientais” (Regina Célia Di Ciommo, Ecofeminismo e Educação Ambiental, Editorial Cone Sul, Editora UNIUBE, São Paulo, 1999, página 70).
      Uma das correntes ecofilosóficas contemporâneas mais importantes é a Ecologia Profunda, disseminada principalmente pelos trabalhos do norueguês Arne Naess, inspirado por Spinoza e Gandhi. Os princípios do que chamou de Ecosofia são os seguintes: Auto-realização – Quanto maior a Auto-realização alcançada por alguém, maior e mais profunda a identificação com os outros – Quanto maior for o nível de Auto-realização atingido, mais seu avanço depende da realização dos outros – A completa auto-realização de alguém depende da de todos – Auto-realização para todos os seres vivos – A diversidade da vida aumenta o potencial de Auto-realização – Diversidade da vida – A complexidade da vida aumenta o potencial de Auto-realização – Complexidade – Os recursos da Terra são limitados – A simbiose maximiza o potencial de Auto-realização sob a condição de recursos limitados – Simbiose (in Regina Célia Di Ciommo, op.cit., páginas 72-73).
      O feminismo e o Ecofeminismo também têm dado aportes fundamentais para a formulação de uma Ecofilosofia. Entre outros nomes podem ser citados os de Karen Warren, a indiana Vandana Shiva, Susan Griffin, Judith Plant, Ynestra King, Carolyn Merchant e Abby Peterson, todas citadas por Regina Célia Di Ciommo. Karen Warren “define seus princípios fundamentais (do Ecofeminismo), baseados, em primeiro lugar, no reconhecimento de que existem vínculos importantes entre a opressão das mulheres e a da natureza, cuja compreensão e avaliação é tarefa indispensável a toda e qualquer tentativa de compreensão adequada da subordinação, tanto das mulheres quanto da natureza” ( Regina Célia Di Ciommo, op.cit., página 111)    

BEBER NO ORIENTE

      Não é de se estranhar que múltiplos valores e conceitos caros a crenças e sistemas filosóficos do Oriente tenham encontrado terreno fértil para prosperar no reino do materialismo exacerbado do Ocidente. O Tao da Física, livro que se tornou uma referência para muitos ecologistas, no cenário da reinterpretação da ciência moderna, confessa no próprio título o poder de sedução do Oriente.      
      O Tao, o “indefinível”, é descrito a partir de Lao-tsé (Velho Mestre, 604-331 AC, aproximadamente) como um caminho a ser percorrido e, concomitantemente, a meta a ser alcançada. Bem diferente da visão cristã, por exemplo, que projeta em um tempo futuro o cenário ideal (Octavio Paz), o que serviu de justificação para muitas atrocidades contra o ser humano e a natureza. Pois, ora, se o futuro é que importa, um reino imaterial, as ações mundanas eventualmente condenáveis também poderiam ser eventualmente perdoáveis.
      No taoísmo não. Pois se meta e caminho são os mesmos, o que vale no taoísmo é o aqui e agora, o que conta é o que o ser humano faz nesse momento. A conduta moral deve fazer parte integrante da vida, em cada um dos seus atos. Nada de os fins justificam os meios, no resumo habitual do pensamento maquiavélico desenvolvido no momento em que se ensejava um novo elenco de justificação religiosa para o poder do príncipe.   
      Do mesmo modo, contendo em si mesmo os pólos complementares do yin e yang – contra a mania ocidental de divisão maniqueísta entre bem e mal, claro e escuro – o tao é a própria negação dos poderes e razões mundanos. Contemplação e uma certa aceitação do que é tornam-se atitudes implícitas ao taoísmo. Não se trata de explicar muita coisa (e a ânsia por explicar, por interpretar, e típica do racionalismo ocidental que levou à dominação e, infelizmente, depredação da natureza pelo ser humano), mas de viver e deixar viver.
      Claro que, levados ao extremo, esses princípios, na visão de muitos autores, serviram também de justificação para a dominação política nos países do Oriente. A história está cheia de exemplos sobre a insuficiência do poder bélico para se manter a ordem, a paz sempre almejada pelos soberanos e pelas minorias políticas. Sempre foi necessário, também, conquistar corações e mentes, daí a importância da dominação também cultural, e nesse sentido os códigos religiosos sempre jogaram papel crucial.
      Mas independente desse eventual uso de conceitos do taoísmo e mesmo do confucionismo pelo poder no Oriente, o tao não deixa de fascinar pelo que contém de novo olhar, de nova postura em relação à vida. Sobretudo pelo jogo de tensão, pelo diálogo permanente entre yin e yang, entre claro e escuro, entre espírito e matéria. Nada pode ser tão mal como parece ser nem tão bom como aparenta. O mundo é muito mais complexo e, para entendê-lo e vivê-lo, é preciso também um pensamento complexo, e não excessivamente maniqueísta e simplificador como é o modo de vida e de pensamento ocidentais, apesar de seu exaltado e propagado verniz “científico”. George W.Bush, a encarnação típica do soberano que justifica seus atos como uma missão contra o mal, é um produto bem acabado dessa visão maniqueísta originada do zoroastrismo e consolidada pelo Cristianismo. E nada mais típica do que a visão simplista de mundo de Bush, de modo tão imbricada com o que é tido como mais moderno cientificamente, que é a indústria bélica “ultrasofisticada e inteligente” com a qual ele sempre manteve laços importantes. Em outras palavras, o bushismo é tudo o que o taoísmo e a conversa incessante entre yin e yang não são.     
      Em resumo, em um momento em que o pensamento complexo é cada vez mais exaltado por uma nova forma de ver a vida – o modo da Era Ecológica – o taoísmo é naturalmente fonte de subsídios importantes, muito além do que ele possa ter contribuído para a perpetuação do poder em algumas situações. É o mesmo que se pode dizer do Cristianismo, que não foi ele todo uma identidade automática e absoluta com o poder político temporal ou com a muito concreta depredação da natureza. O Cristianismo, enfim, também é claramente yin e yang, e não um pensamento único como os neoconservadores do bushismo acreditam e sustentam.
      A cultura, os valores e a religiosidade dos povos indígenas, das várias partes do mundo, também têm muito a contribuir para uma nova visão da vida, que não seja exclusivamente mediada pelos parâmetros da sociedade tecnocrática. De modo geral a cultura indígena está em estreito contato com a natura, com as forças da natureza. Não se trata de idealizar as comunidades autóctones, mas de identificar o que, em sua tradição e estilo de vida, podem contribuir para uma nova civilização, menos materialista e consumista – de pessoas e de recursos naturais. Uma Ecocivilização.

RESGATE DOS MITOS PRIMORDIAIS


      A mitologia grega é quase insuperável no que tem de tradução perfeita dos desejos mais secretos da humanidade. O vôo de Ícaro, a ousadia de Prometeu em roubar o fogo da sabedoria dos deuses, as artimanhas para derrotar o Minotauro – são os episódios que sintetizam os anseios mais humanos, demasiado humanos.
      Os mitos eternos foram marginalizados pela sociedade tecnocrática. Na realidade, novos mitos foram criados – e não por acaso, os grandes mitos do ocidente, na aurora da sociedade tecnocrática, são homens. Casos de Fausto, “importalizado” pelo texto de Goethe; “D.Quixote”, o mesmo por  Miguel de Cervantes; “Robinson Crusoe”, por Daniel Defoe; e “Dom Juan”, por Tirso de Molina – objetos de estudo exatamente do livro “Mitos do individualismo moderno – Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe”, de Ian Watt.
      O autor explica: “Meus quatro mitos não são propriamente ‘sagrados’, mas derivam da transição do sistema social e intelectual da Idade Média para o sistema dominado pelo pensamento individualista moderno, e essa transição foi ela própria marcada pelo notável desenvolvimento de seus significados originalmente renascentistas para os seus atuais significados românticos” (Ian Watt, Mitos do individualismo moderno, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997, página 16).
      É muito significativo que os principais mitos modernos sejam homens. É a confirmação do predomínio da visão masculina, da produtividade, da dominação do homem sobre a natureza, característica da sociedade tecnocrática.
      Pelo contrário, os mitos eternos ainda continuam dizendo muito para a humanidade. Ela ainda tem muito a aprender com eles, que representam, traduzem, o que há de mais profundo na complexa alma humana.
      Nesse sentido, para a formulação de uma Ecofilosofia, como contribuinte para uma Ecocivilização – a civilização eco-socialista? – é importante aprender e ouvir o que os mitos eternos, nas diferentes culturais, nos têm a dizer.
      De certo modo, é possível identificar uma associação com alguns mitos eternos, quando se analisa a preocupação planetária, nessa turbulenta transição de milênios, com alguns dos grandes desafios ambientais. Por exemplo:
·       Arca de Noé e a biodiversidade -  Existe uma preocupação crescente com a proteção da biodiversidade, a diversidade de espécies animais e vegetais ameaçada de extinção por múltiplos fatores, como desmatamento, queimadas, várias modalidades de poluição etc. Não é o mesmo sentido da Arca de Noé, que segundo a tradição bíblica foi a forma encontra por Deus para salvar as espécies – sobretudo as animais – do grande dilúvio universal? A Arca de Noé está presente, com variações, em diversas tradições culturais e religiosas. Os grupos conservacionistas, que terão muito trabalho no século 21, são os novos Noés?
·        O Deus sol – Uma sociedade ecológica seria, na opinião da maioria de seus defensores, uma sociedade solar, em que a energia solar seria predominante, ou no mínimo muito importante como matriz energética. Uma energia realmente limpa, democrática, descentralizada. Tudo a ver com o mito do sol, o astro-rei que sempre despertou respeito, às vezes temor, nas diferentes tradições culturais e religiosas. Entre os maias e aztecas, na América Latina, ou entre os egípcios dos tempos áureos do Vale do Nilo, o sol sempre foi a grande referência, o deus supremo. O desejo por uma sociedade solar com certeza traz embutida essa percepção, muito entranhada na mentalidade universal.
·        O Inferno e o enxofre – A descrição do Inferno, universalizada pela trilogia fantástica de Dante, a Divina Comédia, está cheia de referências ao cheiro das tenebrosas nuvens de enxofre. A repulsa e a mobilização contra a chuva ácida não deixam de ter ecos dessa visão – o enxofre, como se sabe, é um dos principais provocadores da acidez das chuvas, esse sintoma da degradação do ar e que tem provocado a poluição de lagoas, a destruição de florestas e de monumentos históricos importantes.
·        Reciclagem e as metamorfoses -  Em várias tradições culturais e religiosas está presente o mito de deuses ou semi-deuses (ou sob influência deles) que têm o poder de se transformar, de assumir outras formas. A primeira estrofe de Metamorfoses, de Ovídio, considerado um dos principais poemas sobre as mitologias gregas, trata exatamente disso: “Minha intenção é contar histórias sobre corpos que/ assumem diferentes formas; os deuses,/ que promovem essas transformações/ me ajudarão – pelo menos, assim espero – com um longo poema/ que discorre sobre o início do mundo e se estende até os nossos dias” (Ovídio, Metamorfoses, Madras Editora, São Paulo, 2003, página 9, tradução de Vera Lucia Leitão Magyar). Um dos temas ecológicos mais consistentes e mobilizadores no início do século 21 é o da reciclagem, a crença de que é possível reaproveitar os materiais, transformar em algo diferente uma substância que, em essência, permanece a mesma. Eco das metamorfoses das divindades do Olimpo, apontando para uma sociedade menos fugaz, menos descartável, mais sólida e perene?
·       A gênese da humanidade, na terra – O parto da humanidade é, em muitas tradições culturais e religiosas, identificado com o momento em que o primeiro ser humano foi feito a partir da terra, do barro, do lodo. A tradição bíblica enfatiza essa visão, mas é um fato presente em outras tradições. De novo Ovídio, nas Metamorfoses: “Então nasceu o homem, dizem, à imagem de Deus,/ ou da Terra, talvez, que tão recentemente apartada/ do velho fogo dos céus, ainda retinha/ alguma semente da força celestial que encantou/ os deuses ao surgir com vida do barro e da água”. (Ovídio, op.cit, página 11)  Esse vínculo primário com a Terra é, talvez, o mote de grande parte do movimento planetário por salvar a própria Terra.

      Vários outros mitos poderiam ser citados. De algum modo, muitos deles estão sendo resgatados, neste momento de desejo universal de uma nova sociedade, um novo estilo de vida, uma nova cultura. O momento de construção das Agendas 21 Locais não pode deixar de lado essas referências imemoriais – principalmente as referências próprias da cultura local, de cada comunidade. Os resultados só podem ser positivos.  

             
MÃE TERRA

      O retorno à natureza, o regresso ao útero da Mãe Terra, é um desejo que tem suas raízes fincadas nos recônditos mais profundos da memória humana. Não é surpresa que o desejo de volta à Mãe Terra seja um dos principais indicadores da civilização ecológica que se aproxima. A Agenda 21 Local pode potencializar esse desejo imemorial.
      A Deusa-Mãe da fertilidade foi a matriz de múltiplos códigos religiosos por toda a antiguidade, desde os primórdios do Neolítico. A Deusa-Mãe é o princípio, a gênese civilizatória.
      O primado do deus masculino, dominador como a sociedade patriarcal e devastadora de todas as formas de vida, é muito recente na história da humanidade. Talvez o que estejamos assistindo, no parto da Era Ecológica, seja o resgate da Deusa-Mãe, seqüestrada e tirada do trono pelo deus único, monolítico e masculino das culturas que se tornaram dominantes, particularmente no Ocidente.
      No sistema de crenças desenvolvido na região entre os rios Tigre e Eufrates, berço de muitas inovações caras ao desenvolvimento da civilização ocidental, como o sistema hidráulico, a escrita, a roda e práticas agrícolas, a Deusa-Mãe tinha várias faces sedutoras, como da divindade do amor Ishtar ou da fertilidade Anu, a abóbada celeste geradora da água, a substância da vida.      A mitologia grega é, especialmente, pródiga de referências à Deus-Mãe. Gaia é a própria Terra.
      As “feiticeiras” da Idade Média seriam as intérpretes das vozes da Mãe Terra. O seu massacre, fortalecendo o poder machista, foi o início da crise ecológica em que o Ocidente agoniza desde a Idade Média.

SOCIEDADE SACRIFICIAL

      A mentalidade do sacrifício como ato redentor de uma coletividade, como promessa de um novo tempo, livre das ameaças da natureza, do desconhecido, tem pés bem presos nas camadas inconscientes mais escondidas da humanidade.
      O sacrifício está presente em todas as culturas, em todas as épocas. “O principal ritual religioso na Antiguidade nórdica era o sacrifício. Oferecer alguma coisa em sacrifício a um deus significava aumentar o seu poder. As pessoas precisavam, por exemplo, oferecer sacrifícios aos deuses, a fim de que  eles se fortalecessem o suficiente para vencer as forças do mal. Isto podia ser feito, por exemplo, sacrificando-se um animal. Presume-se que a Tor eram sacrificados sobretudo bodes. Para Odin sacrificavam-se às vezes também pessoas” (Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia, Companhia das Letras, São Paulo, 1998, página 36).
      É fundamental superar o mito da sociedade sacrificial, profundamente entranhado na mentalidade universal. Muitas crianças, muitos idosos, muitas mulheres foram sacrificadas em nome da comunidade. Os meninos de rua e os mendigos do início do século 21 também são mortos no Brasil em nome de uma sociedade excludente e intolerante. Os recursos naturais são igualmente sacrificados, em nome da sociedade ideal produtivista e consumista.
      Não é preciso sacrificar nada, nem ninguém, nenhuma forma de vida, para se alcançar a felicidade. A inclusão social, a tolerância, o respeito à biodiversidade, a não-violência, a ética – todos esses conceitos garantem uma sociedade feliz, amorosa e erotizada. A Agenda 21 Local pode representar um golpe fatal para a sociedade sacrificial.

SUPERAR O APOCALIPSE E A QUEDA


      A idéia de que o ser humano e demais seres vivos devem necessariamente passar por privações, sofrimentos e dissabores – contra a idéia de uma vida plena, saborosa e completamente feliz para todos os seres vivos – é a maior justificação possível para o processo de degradação da vida em todas as suas manifestações. A vida dos seres humanos e demais espécies companheiras e interlocutoras na grande teia da vida.
      Uma espécie de corrupção inexorável, de deterioração irreversível, é a marca desse sentimento de mundo, dessa visão da vida como decadência sistemática e fatal. Pois esta visão da vida e do mundo está presente em quase todos os grandes sistemas filosóficos, culturais e religiosos da história.
      A seqüência de “idades da Terra”, que traz implícita a idéia da queda, da trajetória descendente de um estado paradisíaco a um período de trevas e tormentos, é típica de grande parte das mitologias e códigos religiosos e/ou culturais de todos os tempos. E é a partir dessa seqüência de Idades da Terra, uma percepção de mundo imemorial, que pode ser explicado por que, afinal, as comunidades humanas continuam desprezando a vida, do próprio ser humano e dos seres que o cercam, desprezo que é estendido ao ambiente natural em que a teia da via se manifesta e se desenrola – o lócus da Biosfera.
      O devir humano, a sua peregrinação do Céu ao Inferno, a queda simbolizada no Cristianismo pela tentação de Adão e sua fuga do Paraíso, estão presentes nas mais diversas expressões religiosas e culturais, não sendo portanto exclusividades cristãs. O roteiro das Cinco Idades é um dos pilares da própria mitologia grega, tão cara ao pensamento e à cultura do Ocidente, que a ela sempre recorre nos momentos de crise como o do início do século 21.
      Como descrito por Hesíodo em seu “Os Trabalhos e Os Dias”, as Cinco Idades da aventura humana na Terra são as de Ouro, Prata, Bronze, dos Semideuses e a de Ferro. A Idade do Ouro é a da inexistência do mal, da morte e dos sofrimentos. É o estado paradisíaco, para tomarmos emprestada a terminologia cristã. Neste paraíso selvagem, que sempre imaginamos como sendo a descrição típica de uma floresta tropical, abundante de vida por todos os poros, os seres humanos convivem com as feras e com os deuses.
      Não há necessidade de trabalho – o que já indica como o trabalho sempre foi visto como uma penalidade, um fardo a ser carregado pelos exilados do paraíso. Não há exigência de governo – o que igualmente indica como a idéia de uma sociedade necessariamente governada nem sempre fez parte dos anseios humanos. Nessa Idade do Ouro, os animais não-humanos também vivem como deveriam, em harmonia entre si,com os humanos e a natureza.
      Qual ecologista típico, do início do século 21, não sonha com um novo mundo muito parecido com este paraíso modelar da Idade do Ouro grega? Qual grande utopia forjada pelo engenho humano através dos tempos não se identifica com pelo menos um dos caracteres dessa fabulosa Idade do Ouro magistralmente concebida pela sofisticada imaginação da cultura grega? Seja em “A Utopia”, de Thomas Morus, ou em “As Cidades Invisíveis”, de Ítalo Calvino, encontraremos vestígios desse tempo fora do tempo, desse espaço fora do espaço, onde medram a beleza, o prazer e a imortalidade, as matérias-primas da Idade do Ouro relatada por Hesíodo.
      As outras Idades da mitologia grega complementam a crônica da inexorável queda, do inevitável sucumbir. Nesta linha de raciocínio a crise global do início do século 21 – escalada do terrorismo, as mudanças climáticas globais, a corrida armamentista, a AIDS e outras pandemias – seria um sintoma inevitável da Idade do Ferro, ou seja, da decadência completa.
      Um corolário desse pensamento é a idéia do Apocalipse, reforçada pelo Cristianismo oficial. A idéia de um fim do mundo, que é renovada nos momentos de transição de milênios, como o atual. “É sinal dos tempos”, resumem as pessoas que ainda têm o sentimento do Apocalipse incorporado.
      A mídia dominante tem uma tendência de reforçar a idéia apocalíptica, ao enfatizar a violência, como se fosse inerente à condição humana, entre outros traços característicos de um suposto Apocalipse. O nihilismo, o desespero, a descrença generalizada são típicas de um certo pensamento apocalíptico, de quem não acredita no potencial criativo, libertário e amoroso do ser humano.
      Gestar um novo humanismo, de fraternidade e igualdade, e de viver com a natureza, e não sobre a natureza, é condição sine qua non para a emergência de uma nova civilização, materializada em Ecocidades. Um humanismo que contrarie a idéia da sociedade sacrificial, da queda, do Apocalipse. Um humanismo biocêntrico, e não antropocêntrico.
         

UMA NOVA ESTÉTICA


      Uma Ecocivilização terá uma nova ética mas também uma nova estética. A Arte tem o poder de captar as demandas, os sentidos e as aspirações mais íntimas, os desejos mais profundos da alma humana. A obra de Van Gogh é o testemunho de uma crise existencial profunda – uma crise que tem sido de toda civilização ocidental. A arte de Gauguin é a arte de quem fugiu da opressão anticriadora da Europa que se industrializava – ele teve de fugir para as ilhas do Pacífico para poder exercer em plenitude o seu vigor criativo.
      A arte contemporânea é o atestado de falência da ordem tecnocrática. Recuperar e/ou gestar uma nova estética é algo inseparável de um novo ideal civilizatório. “Realmente si hay que hacer algo com la Naturaleza y com el arte es dejarlos que vivan, que fluyan libremente. Schiller y Marcuse encuentran en la belleza el principio de la libertad y de la ética. Todo el activismo ecológico es también estético, desde el momento que defiende todas las bellezas” (Joaquín Araujo, XXI: Siglo de la Ecología, Editorial Espasa, Madrid, 1996, página 222).
      A arte pura é a negação do produtivismo tecnocrático. Por isso está muito próxima da natureza livre da opressão, assim como da liberdade plena a que todo ser humano aspira. A arte será uma marca essencial da Ecocivilização.    

 

RECADO FINAL


O BAILE DA ECOCIVILIZAÇÃO

“Nós somos os homens ocos.
Os homens empalhados.
Uns nos outros amparados.
O elmo cheio de nada.
Ai de nós”.
(“Os Homens Ocos”, T.S.Elliot, 19   )

      A sociedade tecnocrática gerou homens ocos. Cheios de tanta ciência e tecnologia, de tanto consumo de recursos naturais e energias humanas, mas ocos de valores espirituais, esvaziados do sentido profundo da ética e da solidariedade, cegos para a beleza da vida que, apesar disso tudo, continua bailando lá fora, em sua dança encantadora e resistente.
      Uma nova civilização, uma Ecocivilização, será biocêntrica – a vida no centro de tudo. Não antropocêntrica, com o ser humano se sentindo dono de uma natureza inanimada – porque ela, natureza, não é inanimada, é cheia de vida, e baila e quer bailar. Não machista e por isso hierárquica em todos sentidos – o olhar feminino, embebido de vida, será determinante, e com ele o olhar de todos os grupos sociais excluídos historicamente por que “improdutivos” e  “irracionais” sob a ótica do pensamento tecnocrático.

As cores da vida, livres para exuberar na ecocivilização

      As tradições culturais e espirituais mais íntimas dos povos, de todos os povos, serão respeitadas e resgatadas, como alimento saboroso para uma Ecofilosofia vigorosa e criadora. A descentralização será uma das marcas da Ecocivilização, que por isso mesmo vai valorizar a energia solar e eólica, a energia que não será mais fonte de cobiça e guerras.
      Guerras. Essa palavra será banida da Ecocivilização. A resolução de conflitos sempre será de forma não-violenta. A Ecocivilização será pacífica porque fundada na justiça social e ambiental. A Ecopolítica garantirá a participação de todos na vida pública – uma cidadania ativa, protagonista,  resultado de Educação cada vez mais inclusiva, transversal e transformadora.
      O Brasil tem muito a contribuir para a Ecocivilização. País com a maior reserva de água doce, a maior floresta tropical e, por extensão, a maior biodiversidade, é o país da biodiversidade cultural – no Brasil se fala mais de 100 línguas, por causa dos povos indígenas sobreviventes, e estão aqui os ecos culturais e religiosos de vários e vários povos originários da Europa, da Ásia e, claro, da África. Com sol o ano todo e com um litoral de 7 mil quilômetros, o Brasil está vocacionado para grande laboratório das energias limpas.
      Talvez nenhum país tenha tanta condição histórica de auxiliar mobilização planetária por uma Ecocivilização. Claro, em parceria com a Índia, países africanos, sulamericanos e outros, igualmente biodivesos como ele. Mas para que cumpra essa vocação, o Brasil precisa equacionar alguns dilemas.
      Um dos grandes dilemas do Brasil no início do século 21 é a tensão manifesta e permanente entre a tradição do mundo rural e a rapidez das inovações do mundo urbano. O Brasil ainda vivencia os impactos da rápida transição do mundo rural para o universo urbano, cada um com seus valores às vezes antípodas e que às vezes entram em conflito.



Pequenos indígenas no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira, Pará, fevereiro de 1989: Brasil tem tradições culturais de respeito aos ritmos da natureza

      O ritmo alucinante da vida citadina é fatal para o espírito de solidariedade, de diálogo franco e de reverência com as coisas da natureza e da alma humana, que são muito mais presentes no mundo rural. A mudança foi muito rápida, o deslocamento de milhões de pessoas da zona rural para a zona urbana não foi apenas físico. O mais importante é o elenco de modificações em conceitos, valores, ma forma de ver o mundo, o humano, a vida toda.
      O futuro do Brasil será definido em certa medida pela forma como for equacionado esse conflito. A grande contribuição do Brasil, ou uma delas, para uma nova civilização global talvez seja essa, a de identificar os pontos de contato entre os mundos rural e urbano, em uma tentativa de síntese entre o que  há de bom entre as duas faces que, afinal, são da mesma moeda. Não se trata de aprofundar as diferenças, mas de buscar a aproximação entre o que há de positivo entre as duas situações. Nem a sacralização exagerada do rural, nem a supervalorização do que há no urbano. 
     Grandes saltos civilizatórios foram obtidos por sínteses como essa. O fabuloso legado filosófico grego é em certa medida resultado de uma síntese especial, marcando a passagem da tradição mitológica para o pensamento racional. Foi o momento em que a polis estava sendo gestada como obra do engenho humano, e não mais do capricho dos deuses, entre uma e outra festa no Olimpo, regada a néctar e ao som da cítara.
      O mundo está desejoso de respirar novos ares – os ares do começo, da infância da criação. As Olimpíadas de Atenas, em 2004, demonstraram isso.  Com seu legado cultural e mitológico poderoso, os gregos deram um banho na abertura das Olimpíadas – talvez o momento mágico do Jogos, ao lado da esperança e alegria excepcionais encenadas por nosso Vanderlei Cordeiro de Lima na terra que pariu o Teatro. O show de abertura foi um ritual de purificação para a Terra e a Humanidade, tão desejosas de clareza, transparência e leveza neste já tão atormentado início de um novo século. E nessa clamada volta às origens, que os recentes Jogos Olímpicos simbolizaram, nada mais justo que a união da infância e da água, elemento que mais espelha essa etapa maravilhosa da existência de cada um.
      Quem não desejaria ser aquele menino, naquele barco de papel, flutuando em total felicidade? Os gregos mostraram que é viável conciliar sonho e alta tecnologia. Não precisamos ser reféns de nossos engenhos. Temos direito à utopia, o lugar de paz fora do atual lugar de guerra e dor. E essa utopia, ressaltaram os pais do pensamento ocidental, deve estar embebida em água. A limpeza da água é a limpeza de nossa alma e da alma do planeta.
      Por outro lado, o vôo de Vanderlei Cordeiro de Lima confirmou que nós, os brasileiros, sonhamos alto. A invenção do avião não poderia ter saído de outra nação. Bartolomeu de Gusmão e Santos Dumont são os intérpretes fiéis, feito tecnologia, do desejo imemorial do brasileiro... de voar.
      Mas só podemos sonhar e voar porque nós, filhos de impressionante biodiversidade étnica, cultural e natural, temos alma de água. O desempenho brasileiro nas Olimpíadas de Atenas ratificou essa condição: a maioria de nossas medalhas olímpicas, conquistadas em toda história dos Jogos, tem relação direta ou indireta com a água – ou o ar. São as medalhas das piscinas, das praias ou do mar, onde nossos velejadores de ouro têm pleno domínio dos ventos e da água – saudade das viagens marítimas que nos fecundaram?
      Claro, também existem as medalhas saídas das pistas de atletismo. Mas os saltos espetaculares de Ademar Ferreira da Silva ou, agora, o feito de Vanderlei Cordeiro de Lima seguido de seu vôo em terra firme, também não são típicos de quem almeja, acima de tudo, ter o dom máximo dos pássaros?        
      A leitura da passagem brasileira pela terra de Tróia e do Peloponeso reitera uma vocação tupiniquim, a de ser portadora das boas novas que podem brotar da água, do vento e da terra multicolorida de fauna, flora, pele e cultura. Queremos a paz sem fronteiras, a tolerância sem limites e a Vida reverenciada em plenitude. Diante disso, por que tanta obsessão pela vitória? A Vida é jogo, homens e mulheres somos filhos do lodo que é irmão de raiz do lúdico – Homo luddens. Nascemos para a beleza, a liberdade e a felicidade, que alcançamos quando ajudamos a proteger a Vida. Se não fugirmos de nosso destino, os brasileiros podemos nos considerar atletas com brilho de ouro.   
      E neste cenário todo a Agenda 21 Local, como obra humana, pode ser excelente instrumento de construção da Ecocivilização. Porque pode estimular e consolidar o papel cada vez mais protagonista das mulheres, das crianças, dos adolescentes, dos negros, dos portadores de deficiência, dos idosos – pode apontar para a verdadeira cidade inclusiva, a Ecocidade, célula da Ecocivilização, onde não haverá mais homens ocos – mas seres humanos plenos, fascinados pela beleza da vida e eternos vigilantes e conscientes de ser um elo, não o único, mas importantíssimo, da grande e maravilhosa teia da vida. A vida estará pronta e livre para continuar o baile. 

PCNs: A ROTA
NUCLEAR BRASILEIRA
(Editora Komedi, 2005)




INTRODUÇÃO

DE VOLTA O FANTASMA NUCLEAR NO
INÍCIO DO SÉCULO DA ECOCIVILIZAÇÃO

      A notícia caiu como uma bomba – atômica – entre os ambientalistas brasileiros e parte considerável da comunidade científica: em 2004 o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva anunciou a disposição de concluir a usina de Angra 3 e, ainda, de estudar a possibilidade de construção de Pequenas Centrais Nucleares (PCNs) em alguns pontos do país, como Amazônia e Nordeste.
      Estes anúncios, ainda no campo da hipótese e de alternativas em estudo para incrementar a geração de energia necessária à retomada do processo de crescimento econômico, indicaram que o Brasil poderia estar retomando o seu Programa Nuclear para produção energética, via que parecia abandonada no país após os múltiplos problemas registrados ao longo da turbulenta história dessa fonte de energia em território brasileiro.
      A intenção do governo Lula – ou de setores do governo – também soou no mínimo insólita, considerando que ela aparece justamente no momento em que alguns dos países que mais se utilizaram da energia nuclear, como a Alemanha, estão anunciando a disposição de abandonar essa via, considerada por muitos perigosa demais – e também cara demais – diante de outras fontes de produção energética.
      Espanto maior causou, entre ambientalistas e cientistas, a intenção das Pequenas Centrais Nucleares (PCNs), embora esse termo não tenha sido utilizado explicitamente pelos representantes e/ou funcionários do governo brasileiro. Ocorre que essa possibilidade não tem nada de novo na história conturbada do Programa Nuclear Brasileiro.
      Pelo contrário. Há pelo menos 15 anos alguns cientistas e militares brasileiros cogitam a hipótese de construção de Pequenas Centrais Nucleares no país, com tecnologia nacional. Essa alternativa, que durante anos permaneceu secreta, foi revelada para a opinião pública brasileira em reportagem que o autor deste livro publicou no jornal “Correio Popular”, de Campinas (SP).
      Na edição deste jornal do dia 20 de setembro de 1992, assinei a reportagem intitulada “Campinas é opção para usina nuclear”. Nela revelei que um grupo de seis pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) formulara, para a então Coordenadoria de Projetos Especiais (Copesp), um órgão da Marinha hoje com outro nome, um “Estudo preliminar sobre a atual situação do setor elétrico no Brasil”.
      A Copesp era o órgão responsável pelas pesquisas de desenvolvimento de um reator nuclear no Centro Experimental de Aramar (CEA) em Iperó, na região de Sorocaba (SP). A intenção de militares da Marinha era a adaptação da tecnologia nacional desenvolvida em Iperó, para a construção do primeiro submarino nuclear brasileiro, para a construção de Pequenas Centrais Nucleares (PCNs).
      O estudo que estava sendo conduzido na Unicamp evoluiria, segundo o seu coordenador, para a indicação de regiões que poderiam receber alguma PCN na transição para o século 21. Cogitou-se preliminarmente as macrorregiões da Grande São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Vitória, na Região Sudeste; Salvador, Recife e Fortaleza, no Nordeste; e Manaus, no Norte. Outra possibilidade seria o Interior de São Paulo, no eixo Campinas-Ribeirão Preto, por causa do grande crescimento econômico nessa região, que demandaria novas fontes de geração de energia.
      A revelação da existência desse estudo encomendado pela Copesp foi, entretanto, apenas a ponta do iceberg. Logo cheguei à revelação da existência de um acordo confidencial entre a mesma Copesp e a Companhia Energética de São Paulo (CESP). E outras revelações acabaram acontecendo, como da intenção de alguns militares de se estudar até uma... pequena usina nuclear flutuante para alimentar comunidades isoladas da Amazônia!
      Todas essas revelações provocaram uma grande polêmica no setor científico e ambientalista em todo país. Reuniões com representantes dos órgãos envolvidos foram promovidas no Congresso Nacional e na Assembléia Legislativa de São Paulo, além de várias Câmaras Municipais onde tramitaram projetos, muitos aprovados, proibindo a instalação de usinas nucleares nos respectivos municípios, como no caso de Piracicaba (SP).
      A revelação da hipótese das PCNs representava uma nova face do chamado Programa Nuclear Paralelo, que vinha sendo mantido a sete chaves, desde o final da década de 1970, por setores militares brasileiros. Conseqüência da revelação, foram rompidos muitos acordos estabelecidos entre as instituições envolvidas nos estudos sobre as PCNs. E o tema continuou sendo discutido em vários fóruns, até que a enorme crise financeira que abalou o Programa Nuclear Brasileiro tivesse aparentemente sepultado a idéia das PCNs – e mesmo da conclusão de Angra 3.
      Mas a possibilidade de retomada de Angra 3, citada ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso e reiterada na primeira metade do governo Lula, e – sobretudo – o anúncio da hipótese de pequenas usinas nucleares na Amazônia e Nordeste revelam que a intenção das PCNs nunca foi de fato descartada por alguns setores militares e áreas do setor energético nacional.
      E a tendência, por tudo o que se comentou nessa primeira fase do governo Lula, é que as PCNs permaneçam como alternativa energética, ao menos entre os segmentos que lhe são favoráveis, inclusive diante do cenário internacional nesses anos iniciais do século 21. Existe um claro esforço, entre o setor nuclear brasileiro e internacional, de apresentar e reforçar a energia nuclear como uma boa opção tecnológica para se enfrentar o dilema do agravamento do efeito-estufa, provocado pela emissão de gases atmosféricos como o dióxido de carbono.
      Com a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, a partir de fevereiro de 2005, e com a proximidade do período (2008-2012) em que as reduções de emissões dos gases-estufa previstas no Protocolo deveriam acontecer, há a clara possibilidade de que a alternativa nuclear venha a ser retomada com força pelos seus defensores, e reside aqui o risco de que a hipótese das PCNs seja resgatada com ênfase maior ainda em países como o Brasil. De fato, diante dos altos custos e dos riscos envolvidos no caso das grandes centrais nucleares, o Brasil apenas conseguiria prosseguir seu Programa Nuclear, em termos de geração de energia, com PCNs, consideradas mais baratas.
      Nesse sentido é fundamental que a sociedade civil brasileira esteja, nos dois anos finais do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva (que certamente almeja a reeleição por mais quatro anos, entre 2007-2010), debatendo em toda amplitude a questão da matriz energética nacional, no contexto da discussão, absolutamente fundamental, sobre o modelo de desenvolvimento que se deseja para o Brasil e sobre o seu papel no cenário global do século que, muitos sonham, deveria ser o século da consolidação de uma Ecocivilização.
      Por sua condição excepcional, como o fato de receber sol o ano todo no vasto território nacional (o que significa ampla possibilidade de fomento à energia da biomassa e fotovoltaica), de ter um litoral com mais de 6 mil km (muito propício, portanto, ao incremento da energia eólica) e de ter uma matriz energética já bastante favorável em termos ambientais (à base de fontes hídricas para geração de maior parte da eletricidade consumida), o Brasil encontra-se em posição altamente favorável no sentido de ser líder mundial do debate sobre o fundamental estímulo a fontes de energia realmente limpas, baratas e seguras.
      E mais. Por essa condição favorável em termos energéticos, e por seus magníficos recursos naturais – como sua impressionante biodiversidade (por ter a Floresta Amazônica e a já tão sofrida Mata Atlântica, o país apresenta a maior diversidade de espécies de flora e fauna do planeta) – o Brasil tem total lastro para ser líder indiscutível de ampla discussão sobre a construção de modelo de desenvolvimento de fato sustentável no ameaçado planeta Terra.
      Modelo de desenvolvimento que realmente seja biocêntrico, ou seja, que tenha a vida como um todo como prioridade máxima da humanidade. E um modelo que seja a base da tão sonhada paz universal, fundada na tolerância, no respeito à biodiversidade étnica, cultural, política e religiosa – biodiversidade essa que o Brasil também construiu, em situação singularíssima, ao longo de sua história.
      Enfim, o Brasil tem totais condições de ser uma potência econômica, mas também pode ser uma potência de Primeiríssimo Mundo, também em termos de um novo e fundamental modelo de desenvolvimento. E se o governo de Luis Inácio Lula da Silva, em seus dois primeiros anos de mandato, teve papel importantíssimo na inserção do tema do combate à fome e à miséria na agenda mundial, poderia coroar seus dois últimos anos, em 2005-2006, com esse olhar também para o campo ambiental.
      Infelizmente, as decisões relacionadas à liberação da safra de soja geneticamente modificada e, em especial, a possibilidade de retomada do Programa Nuclear Brasileiro, com a construção de Angra 3 e o estudo de PCNs como alternativa energética, indicam que o governo Lula – ou parte dele – pode não atender esse desejo, que é de muitos, tenho convicção absoluta disso, de que o Brasil possa ser o grande líder global de um grande movimento por um novo modelo de desenvolvimento – um modelo que pudesse ser o fundamento de uma Ecocivilização, quem sabe.
      Mas, eterno otimista, creio que ainda é tempo. E é nesse sentido que espero que esse pequeno livro contribua para o debate absolutamente crucial sobre os destinos da matriz energética brasileira. O livro vai retomar a trajetória das PCNs como alternativa apresentada e defendida por alguns segmentos, situando-se essa hipótese no cenário do debate cada vez mais aceso da energia nuclear como alternativa ao combate ao agravamento do efeito-estufa. Mas também, e principalmente, o livro vai citar o debate sobre o necessário investimento nas chamadas fontes alternativas de energia. Nesse sentido, é bom que se diga, muitas iniciativas positivas já foram tomadas na transição dos séculos 20 e 21, pelo próprio governo brasileiro e por companhias energéticas e grupos empresariais.
      Enfim, o propósito dessa pequena publicação é esse, o de ser um subsídio a mais para a discussão do grande desafio que é a formulação e implementação de um novo modelo de desenvolvimento, tendo, entre seus pilares, o fundamento de uma matriz energética realmente limpa, branda e barata. E o livro é, espero, a manifestação da esperança de que o Brasil possa cumprir o seu destino manifesto de contribuir para a construção de uma nova civilização planetária, profundamente reverente diante da beleza da VIDA.

 

CAPÍTULO I


PCNs, ANGRA 3 E O DEBATE ENERGÉTICO GLOBAL


      As notícias veiculadas na imprensa brasileira em 2003 e 2004, dando conta de que o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva estaria cogitando na conclusão da usina de Angra 3 e em estudos sobre a implantação de mini-usinas nucleares em alguns pontos do país, ocorrem em ocasião crucial para os destinos da humanidade e do planeta Terra.
      Justamente nesse momento,  está em curso o grande debate global sobre que alternativas energéticas e tecnologias devem ser implementadas, ao longo do século 21, como medida preventiva ao previsto superaquecimento das temperaturas terrestres, que poderia gerar efeitos catastróficos principalmente em algumas regiões do planeta.
      Dessa forma, ao contrário da abordagem às vezes parcial e fragmentada do tema em alguns veículos da mídia, é fundamental situar o debate da eventual retomada do Programa Nuclear Brasileiro em um cenário mais amplo. Em um mundo cada vez mais globalizado, e marcado por uma nova e acelerada revolução científico-tecnológica, temas como a energia nuclear não podem ficar limitados ao olhar puramente doméstico e paroquial.
    

ANGRA 3: RESQUÍCIOS DO PROGRAMA BRASIL-ALEMANHA


      No dia 22 de setembro de 2004, na 48a Conferência Geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), sediada na bela capital da Áustria, Viena, o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, reiterou a possibilidade de dilatação do espaço da energia nuclear na matriz energética brasileira – a fonte nuclear responde no início de 2005 por cerca de 4,5% da energia elétrica produzida no país. “A energia de fonte nuclear tem papel assegurado, sendo concretas as possibilidades de ampliação de sua participação na matriz energética do país”, disse o ministro. (“O Globo”, edição de 26 de setembro de 2004, na reportagem “Governo deve concluir a polêmica Angra 3”, de Mônica Tavares).
      As afirmações do ministro foram precedidas e seguidas de outras declarações, do próprio Eduardo Campos e outros membros do governo e/ou funcionários da área energética, no sentido da probabilidade de conclusão da usina nuclear de Angra 3 e de possível estudo de construção de Pequenas Centrais Nucleares (PCNs) para aproveitar a tecnologia desenvolvida no país e, também, as boas reservas de urânio existentes em território brasileiro – o Brasil está em sexto lugar no ranking mundial, podendo subir para terceiro em alguns anos. As principais reservas estão situadas na Bahia, onde são beneficiadas na Unidade de Lagoa Real, das Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Calcula-se que as reservas já conhecidas nesse local seriam suficientes para abastecer por um século as usinas de Angra 1 e 2, já em operação, e também a de Angra 3, se concluída.
      A usina de Angra 3 é a segunda prevista no Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, fechado em 1975, no governo do general Ernesto Geisel. A primeira usina nuclear brasileira, Angra 1, não integrou o Acordo – foi construída pela norteamericana Westinghouse. Angra 1 foi adquirida em 1969, quando se vivia a ditadura militar e o início do chamado “milagre brasileiro”, quando a economia registrava altos índices de crescimento.
       O Acordo Brasil-Alemanha gerou muita controvérsia em escala internacional. Havia  a desconfiança de que o Brasil poderia estar aspirando a ingressar no seleto clube dos fabricantes de armas atômicas. Nos Estados Unidos, o Acordo virou tema da campanha presidencial, envolvendo o presidente Gerald Ford e o candidato democrata, que seria eleito, Jimmy Carter, que prometeu lutar contra a sua concretização.
      Mas o Acordo acabou sendo fechado, com a previsão de construção de oito usinas até 1990, incluindo ainda a prospecção, exploração e comercialização de urânio (20% seriam destinados à Alemanha). Entre outros itens, o Acordo também previa o fornecimento de uma usina de enriquecimento de urânio pelo Centro de Pesquisas Nucleares de Karlsruhe (GFK).
      Muitas cláusulas do Acordo Brasil-Alemanha permaneceram secretas, mas apesar de todo investimento foi concluída apenas uma das oito usinas previstas, a de Angra 2, que entrou em operação experimental somente a 21 de julho de 2000, dez anos depois de concluído o prazo que havia sido estipulado para a construção de oito plantas nucleares. Foram gastos aproximadamente R$ 10 bilhões na usina, dos quais R$ 7 bilhões em juros.
      Enquanto a construção de Angra 2 se arrastou por anos, foi desenvolvido o Programa Nuclear Paralelo (Ver Capitulo II). Angra 3, a segunda usina prevista no Acordo Brasil-Alemanha, também permanece parada há anos. Calcula-se em US$ 750 milhões o que já foi gasto na compra dos equipamentos, que estão guardados em barracões em Angra dos Reis e nas instalações da Nuclep, em Itaguaí, também no Rio de Janeiro.
      A estimativa é de que outros R$ 900 milhões já foram gastos, desde 1986, somente com a manutenção dos equipamentos adquiridos. E estima-se em mais R$ 7,5 bilhões o valor necessário para a conclusão da usina, que teria a capacidade de produzir 1.300 megawatts de energia, equivalente à potência de Angra 2 e suficiente para abastecer uma população em torno de 6 milhões de pessoas.
      O alto custo sempre foi uma das principais barreiras à expansão da energia nuclear, ao lado de suas implicações ambientais. A preços de final de 2004, o quilowatt custava US$ 2 mil em uma usina nuclear, US$ 1 mil em uma usina hidrelétrica e US$ 500 em uma  termelétrica a gás – todas em fase de construção. Durante a etapa de operação, o quilowatt/hora custava de US$ 50 a US$ 60 em uma usina nuclear, de US$ 25 a US$ 30 em uma hidrelétrica e de US$ 35 a US$ 40 em uma termelétrica a gás.
      De qualquer modo, existe uma clara disposição no governo brasileiro de retomar a construção de Angra 3. Ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), por meio da Resolução no 8, de 17 de setembro de 2002, concedeu autorização para que a Eletronuclear pudesse executar ações visando a retomada da construção de Angra 3.
      A Resolução foi aprovada, entre outros motivos, considerando que o Plano Decenal de Expansão do Sistema Elétrico 2002-2011 inclui a previsão de possibilidade de entrada em operação de Angra 3 ainda em 2009, embora a data referência de entrada em atividades seja novembro de 2008 (artigo 1o).
      Em seu artigo 2o, a Resolução ainda prevê a autorização para que a própria Eletronuclear e a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) iniciasse imediatamente “os trabalhos de seleção do local para a construção do depósito definitivo para os rejeitos radioativos provenientes das três usinas nucleares de Angra dos Reis, respeitados os termos do art. 6º da Lei nº 10.308, de 20 de novembro de 2001”.
      O artigo 3o da Resolução do CNPE estipula que a Eletronuclear deve cumprir o estabelecido nos Termos de Compromisso de Ajustamento de Conduta relacionados a Angra 1 e 2 e, ainda, os compromissos relacionados a Angra 3, indicados na Moção 31 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), de novembro de 2001. Estes compromissos, segundo a Resolução do CNPE, deveria estar concluídos de forma prévia “à obtenção do licenciamento ambiental de Angra III”.
      Ponto crítico indicado na Resolução de setembro de 2002 está no artigo 4o, ao indicar que a Centrais Elétricas Brasileiras – Eletrobrás deveria apresentar ao próprio CNPE a sua proposta de financiamento da conclusão de Angra 3, “bem como para a amortização do serviço da dívida nos primeiros anos de operação”.
      O alto custo para a construção da usina representa, com efeito, um dos calcanhares de Aquiles do projeto de Angra 3. A possibilidade de obtenção de recursos da própria Alemanha, para a execução do empreendimento, tornou-se muito dificultada com a decisão do Bundestag, o Parlamento alemão, tomada ainda em maio de 2001, impedindo o apoio oficial à concessão de créditos do país para financiar a exportação de tecnologia nuclear. O governo brasileiro, se decidir realmente pela continuidade de Angra 3, terá então provavelmente de buscar recursos em outras fontes de financiamento em âmbito internacional, pois dificilmente haveria recursos internos para custear totalmente o projeto.
      Além da decisão sobre os créditos, o governo alemão anunciou em novembro de 2004 a proposta, encaminhada ao governo brasileiro, de substituir o Acordo de Cooperação Nuclear de 1975 por outro acordo, relativo ao estímulo a energias renováveis e à conservação energética. O governo Lula anunciou na ocasião o apoio à proposta alemã, que também recebeu o apoio de organizações como a Greenpeace-Brasil, para quem seria uma ótima oportunidade, por exemplo, de reforçar duas iniciativas governamentais no Brasil: o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) e o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel).
      Esta é a íntegra da nota oficial do governo alemão, datada de 5 de novembro de 2004, e encaminhada ao governo brasileiro:
“1.O acordo nuclear Brasil-Alemanha se tornou obsoleto há muitos anos. Por outro lado foi desenvolvida uma perspectiva de cooperação mais profunda em outras áreas no setor de energia.
2. A Alemanha propõe com insistência a substituição do Acordo Nuclear de 1975 por um acordo de cooperação na área de energia (considerando especialmente energias renováveis) e propõe que as negociações para este novo acordo sejam iniciadas imediatamente.  Nesse contexto, deverão ser consideradas as competências de ambos os parceiros, por exemplo nas áreas de redução de consumo de energia, eficiência energética e redução de emissões.
3. A evolução deste acordo para uma cooperação bilateral na área de energia tem por objetivo contribuir para aprofundar a parceria estratégica entre ambos os países. O Brasil é um parceiro muito importante para a Alemanha, especialmente na área de energia. A Alemanha se compromete, junto com o Brasil, a promover internacionalmente políticas energéticas sustentáveis”.
      As decisões do Parlamento e governo alemães são muito coerentes com a postura que o país vem adotando no cenário energético internacional. O governo alemão já anunciou a clara disposição de encerrar as atividades de suas 19 usinas nucleares, ao final de seus respectivos ciclos de operação, e de não iniciar a construção de novas plantas nucleares. A mesma disposição foi anunciada pela Bélgica em relação a suas sete usinas nucleares, enquanto a Turquia também anunciou a disposição de não concretizar o projeto de sua primeira planta nuclear para geração de eletricidade.
      Existe, enfim, uma clara tendência internacional pelo abandono progressivo da energia nuclear, pelos altos custos financeiros envolvidos, pelos riscos ambientais e pelos acidentes já ocorridos, como o da usina de Chernobyl, na Ucrânia, em abril de 1986. No maior acidente nuclear da história, a explosão de um dos quatro reatores da usina provocou uma nuvem radioativa estimada em 100 milhões de curies. Em conseqüência, mais de 15 mil pessoas morreram, enquanto mais de 10 milhões podem ter sido afetadas, em vários países europeus. Depois de Chernobyl outros acidentes de baixa intensidade ocorreram, como no Japão. E mesmo a usina de Angra 1, em  18 anos de atividades, registrou 34 episódios, como nos casos de vazamento de água e problemas no gerador de vapor, conforme levantamento do deputado estadual Carlos Minc (PT-RJ).   
      De qualquer modo, diante da intenção manifesta por setores do governo Lula, de concluir Angra 3, a Greenpeace-Brasil iniciou uma campanha em todo país, ainda em 2003. As linhas da campanha foram indicadas no SESC-Campinas, dia 29 de julho de 2003, no sexto encontro do Fórum Regional de Meio Ambiente, promovido em parceria entre o SESC-Campinas e a Officina 3, com a coordenação técnica do jornalista José Pedro Martins.
      No encontro o jornalista e escritor argentino Miguel Grinberg, Prêmio Global 500 da ONU, defendeu o “questionamento do nuclearismo como uma ideologia, e não apenas sobre o projeto de uma ou outra usina atômica”.
      Grinberg lembrou que a energia nuclear “sempre esteve vinculada às intenções militares, nunca houve uma divisão clara entre interesses civis e militares”. Após o fim da Guerra Fria, acentuou, a geopolítica mundial mudou. E os membros com direito a voto e a veto no Conselho de Segurança da ONU – Estados Unidos, Rússia (ex-URSS), Grã-Bretanha, França e China – são justamente as maiores potências nucleares do planeta, ainda com grande arsenal atômico em seu poder. Na América Latina, lembrou, os projetos nucleares do Brasil e Argentina nasceram  e se desenvolveram sob tutela militar. 
      No mesmo encontro do Fórum Regional do Meio Ambiente, que discutiu a temática da energia nuclear – pela proximidade da lembrança dos 68 anos da explosões de Hiroshima e Nagasaki, o coordenador da Campanha de Energia da Greenpeace-Brasil, Sergio Dialetachi, expôs as linhas da campanha contra Angra 3.
      O coordenador da Greenpeace começou lamentando a saída, então recente, do físico José Goldemberg do Conselho Nacional de Política Energética. Atual secretário de Meio Ambiente de São Paulo, Goldemberg é um crítico histórico da energia nuclear.  
      Dialetachi lembrou que um conjunto de 150 cidades, dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, está situado no raio de 450 km que poderia ser atingido em caso de acidente sério com as usinas nucleares de Angra dos Reis, a exemplo do que ocorreu com Chernobyl.
      “Os 1.300 megawatts (MW) da usina de Angra 3 representarão cerca de 1,3% da matriz energética brasileira a um custo e risco altíssimo. Seria muito melhor investir os recursos em fontes alternativas, como a energia eólica e solar”, disse Sergio Dialetachi.
      Ele explicou então que havia sido iniciada uma coleta de assinaturas para encaminhamento ao governo brasileiro. Mas, sobretudo, a Greenpeace iniciaria uma grande discussão sobre a possibilidade de o Brasil liderar amplo movimento global por energias renováveis, seguras e limpas. A organização ecopacifista promoveu de fato em 2004 uma expedição que circulou por 20 estados brasileiros, mostrando as possibilidades de fontes energéticas alternativas no país, sob o lema  “Energia positiva para o Brasil”.
      Além disso, no dia 30 de novembro de 2004, a Greenpeace e representantes do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais entregaram ao presidente Lula o dossiê “Energia positiva para o Brasil”. O documento, em suas 76 páginas, detalha o potencial de energias renováveis no Brasil, além do uso já intensivo das fontes hidrelétricas e do que se utiliza da biomassa, como na produção de álcool combustível. Os ministros da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos (que vem destacando a possibilidade de ampliação da participação da energia nuclear na matriz energética brasileira) e do Meio Ambiente, Marina Silva, também receberam o dossiê.
      Outro trunfo apresentado pelos contrários à conclusão de Angra 3 foi a pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), do Rio de Janeiro, entre maio de junho de 2004. Realizada com 2.300 entrevistados, em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Recife e Belém, a pesquisa mostrou que 80% manifestaram sua posição contrária à construção de novas usinas nucleares no Brasil. Além disso, a grande maioria dos entrevistados mostrou-se favorável ao estímulo às energias renováveis.
      Em suma, existe um cenário nacional e internacional desfavorável a uma decisão pela conclusão de Angra 3, mas também existem setores favoráveis ao projeto. No Rio de Janeiro funciona o Fórum Pró-Angra 3, aglutinando o governo estadual, a Federação das Indústrias do Estado do Rio (Firjan) e organizações como o Clube de Engenharia e a Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN). Os equipamentos já adquiridos para a usina, a geração de 5 mil empregos diretos e 15 mil indiretos na etapa de construção e a proximidade da planta de um grande centro consumidor são alguns dos argumentos apresentados pelos defensores do projeto.
      Mesmo que o governo brasileiro insista na tecla de Angra 3, tudo indica, entretanto, que a era das grandes usinas nucleares estará encerrada no Brasil. Resta, entretanto, a alternativa das chamadas Pequenas Centrais Nucleares (PCNs), de 100 a 300 megawatts, e vários indícios no governo apontam para essa hipótese – cuja existência foi revelada com pioneirismo na citada reportagem do “Correio Popular” de Campinas, de setembro de 1992.

A HIPÓTESE DAS PCNs
       
         Em 2004, além da possibilidade de retomada de Angra 3, em vários momentos também foi citada a hipótese de inclusão de mini usinas nucleares no cenário energético brasileiro. O ministro Eduardo Campos citou em um programa de televisão a possibilidade de estudos sobre a construção de quatro novas usinas nucleares no Brasil.
      Segundo reportagem de “O Globo”, estaria em estudo a possibilidade de construção de usinas de 300 megawatts, com tecnologia totalmente nacional e que seriam instaladas em cidades como Manaus e no Nordeste – duas das áreas cogitadas em 1992, nas reportagens do autor deste livro no “Correio Popular”. Ainda de acordo com “O Globo”, na reportagem de Mônica Tavares, o governo também estaria estudando pequenos reatores, de 40 a 60 megawatts, para a dessalinização de água salobra na região semi-árida do Nordeste.  
      As declarações do ministro Eduardo Campos foram muito bem recebidas em setores favoráveis à energia nuclear. Durante o III Seminário de Ciência, Tecnologia e Inovação para a Defesa Nacional, realizado dia 20 de outubro de 2004 na Universidade de Brasília, a construção de novas usinas nucleares, de pequeno porte, foi defendida pelo almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. Durante 15 anos ele presidiu a Copesp, o órgão da Marinha que fez convênios com a Unicamp e a Cesp, no início da década de 1990, quando se estudou a possibilidade de inclusão de PCNs na matriz energética brasileira.
      Por outro lado, as declarações do ministro Campos também geraram inquietação em alguns segmentos. Ainda em outubro de 2004 o deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) solicitou por exemplo à Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara que discutisse as declarações do ministro, favoráveis à construção de novas  usinas nucleares no país. E naturalmente o segmento ambientalista foi o que mais se manifestou de modo crítico em relação às declarações do ministro.
      A intenção de áreas governamentais em continuar o Programa Nuclear Brasileiro, incluindo-se as PCNs, de qualquer forma está inserida em um cenário internacional em que esta alternativa é defendida pelo chamado lobby nuclear, como uma das opções de combate ao agravamento do efeito-estufa.
      As Pequenas Centrais Nucleares são consideradas cada vez mais uma alternativa para equacionar a crise da energia nuclear no planeta, caracterizada por decisões como da Alemanha, de fechar suas 19 plantas existentes nas primeiras décadas do século 21.
      Nas décadas de 1960 e 1970 a energia nuclear emergiu como uma panacéia para a geração de eletricidade no planeta. Principalmente após a crise dos preços do petróleo, em 1973, a energia nuclear foi incentivada e de fato se multiplicou por vários países. Em 30 anos a participação da energia nuclear na matriz de eletricidade mundial subiu de 0,1% para 17%.      As estimativas eram muito otimistas. Levantamento de janeiro de 1984 indicava a existência de 317 reatores em funcionamento, somando 190 mil MW de potência. Estavam em construção 209 reatores. A estimativa da Agência Internacional de Energia Atômica era de que, em 1990, estariam em operação 500 reatores, com potência instalada de 370 mil MW.      Mas a realidade mostrou-se bem diferente. Em função dos altos custos financeiros envolvidos, da crescente oposição popular e de acidentes como o de Chernobyl, ficou muito mais difícil concluir uma usina nuclear. Segundo a AIEA, no final de 2002 existiam 441 usinas em operação, em 34 países, correspondendo a 358 mil MW.
     Alguns países dependem muito da energia nuclear para a produção de eletricidade. Este são os países que mais usam essa modalidade de produção de energia elétrica:

PAÍS                    UNIDADES, MW                 EM CONSTRUÇÃO        
                            E % NUCLEAR
                            NO TOTAL

LITUÂNIA                  2 (2370 MW) – 85,6%           1 unidade
FRANÇA            56 (58493 MW) – 76,1%                 4 unidades
HUNGRIA                   4 (1729 MW) – 62,3%           nenhuma
BÉLGICA                    7 (5527 MW) – 55,5%           nenhuma
SUÉCIA              12 (10002 MW) – 46,6%                 nenhuma
BULGÁRIA       6 (3538 MW) – 46,4%           nenhuma
RE.ESLOVACA          4 (1632 MW) – 44,1%           4 unidades
SUÍÇA                5 (3030 MW) – 39,9%           nenhuma
ESLOVÊNIA     1 (632 MW) – 39,5%             nenhuma
UCRÂNIA          16 (13629 MW) – 37,8%                 5 unidades

      Em termos das grandes potências, o país com maior número de usinas nucleares são os Estados Unidos, com 109 usinas e capacidade instalada de 98784 MW, respondendo por 22,5% da eletricidade produzida. No momento do levantamento da AIEA, em 2002, os EUA construíam apenas uma nova usina nuclear. Depois aparece – além da França – o Japão, com 51 usinas, somando 39917 MW instalados e representando 33,4% da energia elétrica produzida. E depois vem a Alemanha, com suas 19 usinas – com data marcada para fechamento – produzindo 22017 MW, ou 29,1% da eletricidade gerada.
      Pelos motivos elencados, existia uma clara perspectiva de paralisia na geração nuclear, mas uma nova janela foi aberta com a discussão global sobre mudanças climáticas. O debate sobre formas de prevenir o agravamento do efeito-estufa deu, então, uma sobrevida ao poderoso lobby nuclear.

EFEITO-ESTUFA E LOBBY NUCLEAR

      O lobby nuclear mostrou a sua força na histórica Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, realizada em junho de 1992, no Rio de Janeiro. Foi a maior reunião já realizada de chefes de Estado e governo sobre a temática ambiental, associada às questões sociais e de desenvolvimento. Também houve grande participação de ONGs, reunidas no Fórum Global, que coloriu e alegrou o aterro do Flamengo, ao contrário do clima oficial e frio da  reunião oficial, no Riocentro, em Jacarepaguá.
      A Eco-92 aprovou cinco principais documentos: Declaração do Rio de Janeiro, com 27 princípios; uma Declaração sobre Florestas; Convenção da Mudança Climática; Convenção da Biodiversidade; e o principal documento, a Agenda 21, um conjunto de princípios e diretrizes para que os países e suas sociedades construíssem o chamado desenvolvimento sustentável ao longo do século 21. A Agenda 21 é um grande documento, com 40 capítulos, sobre diversos aspectos sociais, ambientais e de desenvolvimento.
      Apesar de sua evidente importância para a temática em discussão, a questão das armas nucleares foi suprimida da Agenda 21 e da programação da Eco-92. O Capítulo 22 da Agenda 21, um dos menores do documento, trata somente da destinação adequada dos resíduos nucleares.
      Durante a Eco-92, organizações ambientalistas do Japão denunciaram a intenção do seu governo de duplicar o número de usinas nucleares no país – na realidade, além das 51 usinas em 2002, outras três estavam sendo construídas.
      De seu lado, o presidente da França, François Miterrand, ficou menos de seis horas no Rio de Janeiro. A curta estadia foi interpretada como pressão da indústria nuclear, pois o presidente francês temia manifestações anti-nuclear, sobretudo relacionadas aos testes atômicos franceses no Oceano Pacífico, que já haviam sido abandonados.
      Contra a limitação do debate sobre energia nuclear na esfera oficial, ONGs promoveram vários encontros a respeito no Fórum Global. Teve destaque o Seminário sobre Perigos Atômicos, iniciativa do ecologista argentino Miguel Grinberg. O ecologista havia sido o idealizador do Encontro Latinoamericano Anti-Nuclear (ELAN), realizado em três edições antes da Eco-92: Mar Del Plata, Argentina (1988), Porto Alegre, Brasil (1990) e Santiago, Chile (1991).
      O navio Raimbow Warrior (Guerreiro do Arco-Íris), da Greenpeace, foi uma das atrações da Eco-92 e do Fórum Global. O navio – na realidade o segundo, porque o primeiro com o mesmo nome havia sido afundado em julho de 1985, durante protesto anti-testes atômicos no Oceano Pacífico, e levando o fotógrafo português Fernando Pereira à morte – fez várias manobras na Bahia da Guanabara, em protesto contra Angra 1 e 2.
      As ONGs fizeram sua parte, mas o lobby nuclear realmente foi muito forte na Eco-92. E mesmo antes da grande Conferência ele havia sido notado.  Em maio de 1991 a AIEA havia promovido um grande Simpósio de Especialistas sobre Eletricidade e Meio Ambiente. Um dos papers preparados para o evento indicava a intensificação de estudos sobre energia nuclear como ingrediente fundamental na estratégia de combate ao agravamento do efeito-estufa.      Em vários países a indústria nuclear partiu para a ofensiva nesse sentido, e particularmente após o Protocolo de Kyoto, de 1997, que regulamenta a Convenção do Clima, aprovada na Eco-92.
O Protocolo estabelece uma série de obrigações para que os países mais industrializados reduzam a emissão dos denominados gases-estufa. São os gases que agravam o efeito-estufa, fenômeno natural que permite a vida na Terra.      Em termos bem simplificados, o efeito-estufa é caracterizado pela presença de uma grande camada de gases, cobrindo a superfície terrestre e impedindo que a energia dos raios solares seja toda retransmitida para o espaço. A camada de gases constitui uma barreira natural, e a energia solar armazenada garante a vida no planeta.      Ocorre que, a partir da Revolução Industrial, o uso intensivo de combustíveis fósseis, e em especial o carvão e derivados de petróleo, tem levado ao incremento da emissão de gases como o dióxido de carbono (CO2) e metano. São esses gases que tornam mais espessa a camada que cobre a superfície terrestre. O resultado é o superaquecimento das temperaturas terrestres.      Calcula-se em cerca de 0,6 graus centígrados o aumento da temperatura média global no século 20. É um incremento que muitos cientistas atribuem ao grande aumento da emissão de gases-estufa, em atividades conhecidas como antropogênicas, ou seja, produzidas pelo ser humano.                              
      O Painel Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática (IPCC), criado pela ONU em 1988, apresentou vários estudos desde sua constituição, e o de 2001 indicou que a presença de CO2 na atmosfera aumentou nos últimos dois séculos de 280 para 368 partes por milhão (ppm). Se continuar o atual ritmo de emissões de gases-estufa, particularmente pelo setor industrial e frota de automóveis,      o IPCC estima que em 2100 a concentração seria de 970 ppm. O resultado seria o incremento da média climática global de 0,8 a 2,6 graus centígrados entre 1990 e 2050. Para 2100 haveria um aumento projetado de 1,4 a 5,8 graus centígrados.
      Os impactos dessa elevação da temperatura seria catastrófico, com multiplicação de furacões e tufões em algumas áreas, e de inundações ou secas em outras. A proliferação de epidemias é igualmente esperada. A agricultura seria muito afetada, e a produção de alimentos também.
      É para evitar tudo isso que o Protocolo de Kyoto prevê a redução da emissão de gases-estufa, em pelo menos 5%, entre 2008 e 2012, em relação às emissões de 1990. As metas do Protocolo são consideradas tímidas para muitos ambientalistas e cientistas, para quem as reduções deveriam ser muito maiores.
      De qualquer modo Kyoto representa o compromisso político dos países, particularmente dos mais industrializados, no sentido de promover pesquisas e gestos práticos para alterações tecnológicas e outras ações visando a redução dos gases-estufa. Ocorre que, para entrar em vigor, o Protocolo de Kyoto teria de ser ratificado pelos parlamentos e governos de países que, juntos, correspondessem a 55% dos gases-estufa emitidos.
      Pela recusa sistemática dos Estados Unidos (responsáveis por 25% dos gases-estufa emitidos anualmente em todo mundo) em ratificar o Protocolo, a sua entrada em vigor estava ameaçada. Até outubro de 2004 os mais de 120 países que haviam ratificado Kyoto representavam 44,2% das emissões dos gases-estufa. Em 22 de outubro daquele mês o Parlamento da Rússia ratificou o Protocolo, e com isso o conjunto de países elevou-se para uma soma de 61,6% das emissões, o que permite a Kyoto a entrar em vigor, a partir de fevereiro de 2005.
      Restarão três anos, então, para início do período (2008-2012) previsto para que os países industrializados alcancem as metas de redução de emissão. Haverá então uma corrida mundial para a redução das emissões, pela adoção de novas formas de produção e consumo de energia.
      E é neste sentido que a geração nuclear se apresenta como uma solução, na medida em que a emissão de gases-estufa por uma planta nuclear é muito reduzida. O Protocolo de Kyoto prevê instrumentos, como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que permite o investimento de um país industrializado, em algum projeto de reflorestamento ou energético em país em desenvolvimento, com  o propósito de compensar suas emissões de gases-estufa, equivalentes em toneladas de carbono. O saldo é abatido da conta das emissões do respectivo país industrializado.
      Está prevista, neste sentido, a aceleração a partir de 2008 do chamado mercado de créditos de carbono. Vários países já estão se preparando para atuar no mercado de carbono, que incluirá títulos – negociados em bolsas de mercadorias e futuros – relacionados a quanto um determinado país pode “comprar”  ou não de créditos de carbono evitados.
      É neste cenário que a alternativa nuclear pode encontrar um novo espaço para crescer, considerando que a construção de usinas atômicas contribuiria para reduzir as emissões atmosféricas. Esse argumento tem sido levantado por seus defensores em todas as Conferências das Partes (COPs), realizadas anualmente desde 1995, com o propósito de colocar as diretrizes da Convenção do Clima em prática. Desde 1997, com a aprovação do Protocolo de Kyoto na COP3, realizada na cidade japonesa de Kyoto, as COPs discutem basicamente como o Protocolo deveria entrar em vigor.
      Na COP10, realizada em dezembro de 2004 em Buenos Aires, o setor nuclear estava novamente presente. Participaram da Conferência, entre outras organizações do setor, a European Nuclear Society e a World Nuclear Association, representativos de grandes indústrias da área nuclear.
      Nesta conjuntura a hipótese das PCNs como alternativa energética no Brasil encontra novo fôlego para ser apresentada à opinião pública. E o formato de uma PCN é muito mais “atraente” do que as grandes e tradicionais usinas nucleares, sempre cercadas de grande aparato de segurança.
      Usinas menores têm sido há algum tempo apresentadas pelo setor nuclear como uma alternativa mais barata e “segura”. Uma grande usina implica em uma complexidade enorme, com sistemas de segurança apuradíssimos a cada etapa de funcionamento da planta. Usinas menores, menos complexas, seriam assim teoricamente mais seguras.
      Uma opção que vem sendo muito defendida é a dos chamados reatores modulares de leito granular (PBMR em inglês). Os reatores PBMR têm, por exemplo, sistemas de bombeamento, canos, cabos e número de válvulas muito mais reduzidos em relação aos reatores tradicionais.
 A usina nuclear de menor porte também implica em menor produção de resíduos nucleares, um eterno problema para essa modalidade de geração de energia. Não existe, ainda, tecnologia totalmente segura para armazenamento dos resíduos radioativos. O armazenamento ainda é feito, no início do século 21, em depósitos construídos com enormes custos financeiros, ambientais e sociais. O depósito em construção nas Montanhas Yucca, nos Estados Unidos, foi projetado para receber até 70 mil toneladas de resíduo atômico. O investimento foi orçado em cerca de US$ 15 bilhões.
      Por vários fatores a Pequena Central Nuclear se projeta, em resumo, como a alternativa que resta para a indústria nuclear, sobretudo em um país como o Brasil.  As manifestações do ministro Eduardo Campos, no final de 2004, e os estudos para a implantação de PCNs em vários pontos do território brasileiro, revelados a partir de minhas reportagens no “Correio Popular”, em 1992, indicam que as Pequenas Centrais Nucleares há tempo povoam, e continuam povoando, os sonhos do setor nuclear no Brasil. Deve ser esse o caminho adotado pelo setor no século 21, se é que a sociedade brasileira vai apoiar essa cara financeiramente, perigosa ambientalmente e insustentável eticamente forma de produção de eletricidade, em um país que pode ser o líder mundial da energia renovável. O debate pode estar apenas começando, e os dois anos finais (2005-2006) do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva podem ser decisivos.



CAPÍTULO II
AS PCNs e o PROGRAMA NUCLEAR BRASILEIRO

      As Pequenas Centrais Nucleares (PCNs) aparecem no cenário brasileiro, inicialmente vinculadas ao que se denominou Programa Nuclear Paralelo, que vigorou durante o regime militar. Vários nomes e organizações ligados à idéia das PCNs têm relação direta com o segmento militar.
      A existência da idéia das PCNs, para algumas regiões do Brasil, foi revelada à opinião pública brasileira e internacional na citada reportagem que publiquei no “Correio Popular”, de Campinas, de 20 de setembro de 1992.
     Neste capítulo resgato toda a polêmica que cercou a publicação daquela e de outras reportagens, e também do livro “PCNs: Novo Perigo Nuclear”, que publiquei ainda em 1992 (Booket Editora), reunindo o que já havia sido divulgado a respeito. Entendo que relembrar essa história é importante para situar o debate das PCNs em um cenário mais amplo, acentuando-se o fato de que essa alternativa não é nova: há anos está presente nas projeções do paciente e muito bem organizado setor nuclear.

GÊNESE DO “PROGRAMA DE PCNs”

      Um programa – no sentido de um conjunto de estudos e medidas tomadas com relação a essa possível alternativa energética – para viabilizar o empreendimento para PCNs foi idealizado na Coordenadoria de Projetos Especiais (Copesp), órgão ligado à Marinha brasileira. Durante 15 anos a Copesp foi presidida pelo almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva.
      A Copesp foi criada a 17 de outubro de 1986, pelo decreto no 93.439. O nome do órgão foi modificado para Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) em 1995, três anos após a série de reportagens publicadas no “Correio Popular”, a respeito dos estudos sobre as PCNs. 
      Em Iperó, município próximo a Sorocaba, a Copesp passou a manter o Centro Experimental (CEA), onde estão vários laboratórios e onde passaram a ser realizadas pesquisas ligadas ao desenvolvimento de um reator nuclear, com tecnologia totalmente nacional. O reator seria a base de propulsão do primeiro submarino nuclear brasileiro, projeto acalentado há anos pela Marinha.
      A Marinha vem defendendo a necessidade de um submarino nuclear em razão de suas vantagens comparativas com um submarino tradicional. A possibilidade de permanência de maior tempo em imersão é uma das vantagens alegadas para o submarino nuclear, que faria com maior autonomia a guarda das costas brasileiras.
      O reator nuclear desenvolvido no Centro Experimental de Aramar, do tipo Pressurized Water Reator (PWR), é o propósito do Projeto da Instalação Nuclear à Água Pressurizada INAP). De forma associada está o Projeto do Ciclo do Combustível, que tem como objetivo dominar a tecnologia de enriquecimento de urânio para movimentar o reator.
      Foi no CEA que germinou a idéia de se empregar a tecnologia desenvolvida em Aramar – visando a construção do reator do submarino nuclear – no sentido de sua aplicação para a geração de energia elétrica em Pequenas Centrais Nucleares. O primeiro reator em desenvolvimento no CEA, o Renap 11, foi projetado para gerar 11 megawatts de energia. A adaptação da tecnologia desenvolvida no Renap 11, para a montagem de um reator de 100 MW, viabilizaria sua aplicação em uma usina nuclear.
     De acordo com o objetivo de desenvolvimento de uma tecnologia nacional, apropriada à realidade brasileira, a Copesp – e depois CTMSP – tornou-se cliente de cerca de 150 indústrias brasileiras, que passou a fornecer vários itens utilizados nos diferentes projetos. Do mesmo modo, o órgão da Marinha passou a manter convênios com Universidades e outros organismos, para o atendimento de seus propósitos.
      É nesse sentido que a Copesp manteve contato com a Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp (no marco do Convênio COPESP/UNICAMP/FUNCAMP no 752/0004/91”, para o desenvolvimento de estudos relacionados às perspectivas do setor elétrico brasileiro, conforme revelou a reportagem do “Correio Popular” de 20 de setembro de 1992. O “Estudo preliminar sobre a atual situação do setor elétrico brasileiro” foi desenvolvido, sob a coordenação de Sergio Valdir Bajay, por um grupo de seis pesquisadores do Departamento de Energia da FEM-Unicamp, da Área Interdisciplinar de Planejamento de Sistemas Energéticos. O Estudo foi concluído em dezembro de 1991.
      O professor Bajay era presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético, integrada por membros da comunidade acadêmica e científica que estudam alternativas energéticas para o país. Apesar de o professor não ter coordenado o Estudo na qualidade de presidente da Associação, e de não falar em nome dela.
      As PCNs eram analisadas no Estudo, entre várias alternativas de produção de energia elétrica, considerando os seus custos unitários de geração. Afirma o Estudo produzido na FEM-Unicamp sobre as PCNs:
      “As pequenas centrais nucleares, PCN’s, principalmente os projetos com conceitos revolucionários, como o AP600, o SBWR, etc, mostram-se bastante interessantes em termos de um possível comissionamento no Brasil.
      Atualmente, as economias de escala em reatores nucleares de grande porte são muito grandes. Os seus custos de capital por kW devem ser 50% inferiores aos custos de capital unitários de reatores de pequeno porte que utilizam a mesma tecnologia e os mesmos conceitos de segurança.
      O que se supõe, entretanto, é que os novos projetos de PCN’s, dadas as simplificações adotadas, possam ser construídos com um sobre custo por kW que não supere em 12% os custos esperados para as plantas de grande porte.
      Em recente estudo sobre a competitividade de reatores de pequeno porte do tipo SIRTM, frente a alternativa de utilizar-se PWRs convencionais de 1175 MWe, foi estimado o custo unitário de capital para uma única SIRTM, a ser construída na Inglaterra, não deveria ser superior a 10% ao correspondente custo unitário de capital esperado para a alternativa de grande porte.
      Para justificar essa expectativa, foram levantados os seguintes argumentos:
i)                   os conceitos de PCNs propostos têm seus projetos otimizados de modo a tirarem vantagem do fato de serem pequenos, ou seja, não se trata de um mero “scale-down” de projetos de grande porte. Portanto, a mera aplicação de fatores de escala não constitui um procedimento válido;
ii)                a possibilidade de pré-montagem dos principais sistemas em fábrica, a modularização das plantas, a possibilidade de instalação de múltiplas unidades em um mesmo sítio, a redução do tempo de construção dos reatores etc são elementos que favorecem as PCN’s;
iii)              um número maior de pequenas unidades faz com que se progrida mais rapidamente sobre as curvas de aprendizado, levando a rápidas otimizações econômicas; e
iv)                um fluxo relativamente constante de encomendas aos fabricantes de equipamentos permite um melhor planejamento dos volumes a serem produzidos, podendo refletir tanto em redução nos preços dos equipamentos, como no custo de manutenção dos mesmos.

      Em termos de planejamento, é muito difícil fazer uma provisão do impacto de cada um desses elementos no custo final das centrais. É verdade que existem fortes indicações de que os custos unitários de capital das PCNs poderão estar próximos dos valores esperados para grandes reatores competitivos economicamente; entretanto, é necessário aprovar o quanto essas vantagens poderão compensar os indubitáveis ganhos de escala dos grandes projetos.
      O projeto AP600, por exemplo, encontra-se em fase adiantada de desenvolvimento; a base de custos fornecida pela Westinghouse confirma a competitividade do projeto, como mostra a tabela 4.5”.
      O Estudo também considera várias outras alternativas, como as usinas hidrelétricas (de pequeno, médio e grande portes), térmicas a carvão, a gás natural, a derivados de petróleo (óleos combustíveis usuais, óleos ultra-viscosos e óleo diesel), termelétricas a lenha e, ainda, a cogeração industrial e as fontes não convencionais para produção de energia elétrica. O Estudo também faz uma análise dos Sistemas Interligados Brasileiros, apontando-se os gargalos e as obras previstas, à luz do Plano 2010 da Eletrobrás.
      O Estudo aponta, então, as regiões que estariam apresentando maiores déficits energéticos e, portanto, maior necessidade de investimento. Afirma o Estudo: “A complementação térmica apresenta grande importância para a caracterização dos déficits regionais de potência. Além das usinas de Angra dos Reis I, II e III, localizadas mo macroponto do Rio de Janeiro, considerou-se a possibilidade de se instalar usinas termoelétricas com cerca de 5000 MW adicionais até 2010 e mais 5000 MW em 2015, distribuídas entre as Regiões Sudeste e Nordeste.
      As conclusões indicam que, na Região Sudeste os macropontos de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Interior Paulista, Vitória, Brasília e Goiânia são os que apresentam maiores concentrações de carga e déficits de geração. Na tabela 5.15 apresenta-se os resultados dos balanços para esses pontos.
      Os quatro primeiros pontos indicados no quadro são candidatos a se tornarem receptores de novas fontes de geração. Destaca-se o déficit de São Paulo, que é da ordem de 3 a 4 vezes superior ao Rio de Janeiro, segundo da ista. O déficit paulista é tão expressivo, que permanece elevado mesmo com a maior parte das usinas termoelétricas previstas para a Região Sudeste estarem localizadas nesse macroponto.
      O macroponto “Interior Paulista” apresenta um déficit bastante elevado, e embora não se caracterize como candidato a injeções de potência por se constituir de cargas distribuídas e próximas à geração do Paraná, cabe destacar o potencial de cogeração das usinas de açúcar e álcool da região”.
      Nas Conclusões Gerais do Estudo, fica claro que ele foi formulado dentro do propósito da Copesp de estudar a possibilidade de inclusão das PCNs na matriz energética brasileira. Afirma o texto:
      “Conforme foi indicado na introdução deste relatório, o objetivo deste trabalho foi prover a COPESP de informações básicas sobre o planejamento da expansão do Setor Elétrico Brasileiro, principalmente no que diz respeito a seus aspectos institucionais, metodológicos, de mercado, opções de suprimento, custos unitários de geração e custos marginais de expansão, enfocando tanto os sistemas interligados como os isolados. Estas informações serão essenciais nos futuros estudos relativos à possível inserção de pequenas centrais nucleares – PCN’s, utilizando os novos conceitos de “segurança passiva”, no Setor, no início do próximo século.
      Em um caráter bastante preliminar, já se pode tecer algumas considerações sobre esta possível inserção, à luz das informações contidas neste relatório. Para tanto, dividir-se-á a possível faixa de capacidade instalada das PCN’s em três categorias: 10 a 50 MW, 100 a 300 MW e 400 a 600 MW.
      Tal qual está ocorrendo no exterior, no Brasil também a principal referência, em termos de comparação dos custos unitários de geração, das PCN’s deve ser os custos correspondentes das centrais nucleares de grande porte; os custos das centrais a carvão mineral constituem uma segunda referência interessante. Conforme indicado neste relatório, os estudos de planejamento de longo prazo da ELETROBRÁS prevêem um espaço significativo para a geração nuclear no sistema brasileiro a partir do início do próximo século, espaço este difícil de ser preenchido com o hoje desacreditado e esfacelado, gerencialmente e financeiramente, Programa Nuclear com a Alemanha; este espaço constitui um ‘nicho natural’ para a possível penetração das PCN’s no país.
      No contexto dos sistemas interligados brasileiros, as regiões Sudeste e Nordeste são as que apresentam as condições mais favoráveis para a possível implantação de PCN’s no início do próximo século, principalmente por causa das limitadas alternativas, econômicas, locais de suprimento, previstas para a época”.
      E, finalmente, o Estudo adverte: “Para se aprofundar estas considerações, outros fatores têm que ser incluídos na análise, tais como as novas perspectivas que estão se delineando com as discussões correntes sobre o “Plano 2015”  da ELETROBRÁS, as perspectivas de difusão da geração descentralizada de energia elétrica no país, uma análise comparativa dos impactos ambientais e riscos de diversas tecnologias de geração, destacando-se os conceitos inovadores de “segurança intrínseca” das PCN’s, a capacitação da indústria nacional para participar, de uma forma competitiva, de um possível programa de PCN’s no país e finalmente a questão da necessidade de se elaborar toda uma nova estratégia visando a tentativa de se reverter, a médio prazo, o atual quadro, em termos de opinião pública, totalmente desfavorável à construção de centrais nucleares no país. A análise desses pontos todos está prevista ser realizada no próximo convênio UNICAMP/COPESP”.
      As afirmações contidas no Estudo são expressivas por si mesmas, e delas pode-se concluir alguns pontos muito significativos à luz das novidades ocorridas ao final do segundo ano do governo Lula, apontando-se para a possibilidade de retomada da idéia das Pequenas Centrais Nucleares como o caminho mais favorável e viável para o Programa Nuclear Brasileiro:
1.     A Copesp, antecessora do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo, efetivamente pensou na hipótese de inserção das PCNs na matriz energética brasileira, e para tanto solicitou um estudo de especialistas vinculados a uma das mais importantes Universidades brasileiras, a Unicamp;
2.     O grupo que elaborou o Estudo, diante dos dados coletados, considerou que as PCNs, comparadas com as grandes usinas nucleares convencionais, em termos de custos, estrutura, impactos e outros fatores, “mostram-se bastante interessantes em termos de um possível comissionamento no Brasil”.
3.     Entre os argumentos favoráveis às PCNs o grupo cita: “a possibilidade de pré-montagem dos principais sistemas em fábrica, a modularização das plantas, a possibilidade de instalação de múltiplas unidades em um mesmo sítio, a redução do tempo de construção dos reatores etc são elementos que favorecem as PCN’s”.
4.     O Estudo indica as regiões que deveriam merecer maior atenção em termos de empreendimentos visando suprir seus déficits energéticos, que seriam os chamados “macropontos” de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Interior Paulista, Vitória, Brasília e Goiânia. O Estudo destaca “o déficit de São Paulo, que é da ordem de 3 a 4 vezes superior ao Rio de Janeiro, segundo da lista”.
5.     Considerando as projeções da Eletrobrás na época, o Estudo mostra que continuaria havendo um “espaço significativo para a geração nuclear no sistema brasileiro a partir do início do próximo século” (século 21, claro), mas o que não poderia ocorrer com o “desacreditado e esfacelado, gerencialmente e financeiramente, Programa Nuclear com a Alemanha”. Diante disso, tal espaço “constitui um ‘nicho natural’ para a possível penetração de PCN’s no país”. Pois bem, o Acordo Nuclear Brasil-Alemanha foi praticamente rompido em novembro de 2004, com a proposta alemã de sua substituição por uma cooperação em energias renováveis e conservação de energia.
6.     E mais: “No contexto dos sistemas interligados brasileiros, as regiões Sudeste e Nordeste são as que apresentam as condições mais favoráveis para a possível implantação de PCN’s no início do próximo século, principalmente por causa das limitadas alternativas, econômicas, locais de suprimento, previstas para a época”. A Região Nordeste foi uma das regiões cotadas, pelas declarações de membros do governo Lula no final de 2004, para receber uma mini usina nuclear.
7.     Nas conclusões, o Estudo salienta a sua condição preliminar, pois haveria necessidade de se considerar outros fatores, como a “capacitação da indústria nacional para participar, de uma forma competitiva, de um possível programa de PCN’s no país”, o que reitera a idéia da Marinha de desenvolvimento de uma tecnologia nacional na área nuclear.
8.     Ainda nas conclusões, o Estudo indica a necessidade “de se elaborar toda uma nova estratégia visando a tentativa de se reverter, a médio prazo, o atual quadro, em termos de opinião pública, totalmente desfavorável, à construção de centrais nucleares no país”.  Pois o atual momento, considerando a idéia em curso em escala global, defendida pelo lobby nuclear, de que essa forma de energia poderia participar das estratégias de combate ao agravamento do efeito-estufa, poderia ser nessa perspectiva mais favorável.
9.     A última frase das Conclusões indica a intenção de continuidade da parceria entre Copesp e o grupo da Unicamp: “A análise desses pontos todos está prevista ser realizada no próximo convênio UNICAMP/COPESP”.
10.           Em suma, o Estudo sugeria o início do século 21 como o potencialmente mais favorável para um grande debate sobre a possibilidade de inserção de PCNs na matriz energética brasileira, considerando os déficits em algumas regiões e outros fatores. Se, como veremos em seguida, a repercussão das revelações sobre a existência de uma hipótese de PCNs foi enorme e negativa para os envolvidos, o que levou inclusive à interrupção nesse sentido da parceria Copesp/Unicamp, a idéia permaneceu germinando no setor militar brasileiro. A retomada dessa discussão em 2004 não é, então, por acaso. Houve todo um amadurecimento, o que indica a necessidade de o assunto ser de fato muito debatido na sociedade brasileira, em torno de um ponto central: qual o caminho que o Brasil pretende seguir, no século 21, em termos energéticos. É uma discussão crucial para os rumos da democracia política e social do país.

AS REPERCUSSÕES DO ESTUDO SIGILOSO

      Inclusive por seu caráter sigiloso, a divulgação da existência de um Estudo elaborado por uma equipe da Unicamp para a Copesp, em torno da idéia das PCNs, naturalmente provocou grande reação na comunidade científica, política e ambientalista brasileira na época. O professor Bajay fez questão na oportunidade de sempre destacar que “tudo é altamente especulativo”, e que uma possível opção pelas PCNs “só pode ser adotada se a tecnologia nuclear for considerada realmente segura, barata e não danosa ao meio ambiente, além de estar submetida ao controle da sociedade, o que não ocorreu em relação ao Acordo Brasil-Alemanha” (in “PCNs-Novo Perigo Nuclear”, de José Pedro Martins, Booket Editora, 1992, pag.17).
      Apesar desses cuidados tomados em suas declarações pelo coordenador do Estudo, é claro que, por toda história do Programa Nuclear Brasileiro, a revelação sobre um possível programa de PCNs, até então desconhecido, causaria polêmica, como de fato causou.
      Em declarações ao autor deste livro, o físico Luis Carlos Meneses, da USP, considerou por exemplo, na época, “muito grave”  a existência dos estudos. Para o físico, um dos mais respeitados do país, “a disseminação de pequenas centrais vai também disseminar os riscos de acidentes nucleares”. (op.cit., pag.18).
       Menezes foi um dos nomes relacionados no dossiê sobre “Os Inimigos do Acordo Nuclear”, divulgado a 4 de julho de 1980 pelo “Jornal de Brasília”. O dossiê foi atribuído à Divisão de Segurança e Informação do Ministério das Minas e Energia.
      Na sociedade civil a reação foi igualmente instantânea. O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), d.Luciano Mendes de Almeida, expressou o temor de que as pesquisas em energia nuclear possam ser direcionadas à produção de armamentos, embora considerasse que o Brasil não poderia ficar afastado do desenvolvimento no campo da energia nuclear para fins pacíficos, pois, do contrário, o país ficaria “distante dos avanços obtidos por outras nações”. O presidente da CNBB já pedia o desenvolvimento de pesquisas em outras alternativas energéticas, como solar e eólica.
      O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, também se pronunciou. Para ele, “a comunidade científica é que deveria dar a última palavra sobre a questão nuclear”. Para ele, os interesses militares no campo da energia nuclear são absolutamente questionáveis “do ponto de vista tecnológico, científico e ético” (op.cit, pag.27).
       
A CONEXÃO CAMPINAS E AS PCNs FLUTUANTES

      A repercussão foi especialmente grande nas regiões apontadas no Estudo como mais aptas a receber uma Pequena Central Nuclear, por causa de fatores como seu déficit energético. O vereador Rafael Silva (PDT), de Ribeirão Preto, elaborou uma moção, aprovada por unanimidade pela Câmara Municipal de sua cidade, de protesto contra hipótese de instalação de PCNs em seu território. Isso porque o Interior paulista havia sido indicado como uma área de grande déficit energético, e particularmente o eixo Campinas-Ribeirão Preto, segundo as declarações de Bajay a este jornalista. Ele citou ainda, nominalmente, as regiões da Grande São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória, no Sudeste; Salvador, Recife e Fortaleza, no Nordeste; e Manaus, no Norte. Moção semelhante de repúdio às PCNs, de autoria do vereador Juan Sebastianes (PV), foi aprovada pela Câmara Municipal de Piracicaba. Inciativas também foram tomadas por vereadores em várias outras partes do Brasil.
      A repercussão foi especialmente grande em Campinas, pelo Estudo para a Copesp ter sido formulado por especialistas da Unicamp e por causa da cidade, grande polo industrial, científico e tecnológico, ter sido citada nominalmente por Bajay como parte da região, o Interior Paulista, no eixo com Ribeirão Preto, que poderia ser estudada para eventualmente receber uma das PCNs.
      Campinas e região já tinham vivido, entre 1991 e 1992, um grande debate sobre o projeto da CESP, de instalação de uma usina termelétrica em Paulínia, movida pelo resíduo ultraviscoso de petróleo (resvac) produzido no pólo petroquímico. Havia, então, um cenário muito marcado pela discussão sobre as opções energéticas brasileiras, e especialistas da própria Unicamp haviam se pronunciado claramente tanto contrárias ao projeto da CESP como favoráveis às alternativas como a conservação de energia.
      Nesse sentido causou controvérsia a participação de especialistas da Unicamp no processo. O debate foi obviamente levado à discussão no Conselho Universitário da instituição. Foi o tema central da 31a Sessão Ordinária do Conselho Universitário, realizada a 30 de março de 1993.
       Nesta reunião o reitor da Unicamp, Carlos Vogt, como faria em outras oportunidades, deixou claro que “a Unicamp não tem grupos competentes, no sentido de competência específica, instalada e constituída para trabalhar com energia nuclear. Não há nenhum grupo de pesquisa na Unicamp que trabalhe sistematicamente dentro de um projeto de desenvolvimento de energia nuclear”, segundo a ata da 31a Sessão Ordinária.
     Nesse sentido foi esclarecido que a participação do professor Bajay, coordenador do grupo contratado pela Copesp para a realização do citado Estudo, foi sempre, simplesmente, no sentido de “fazer um diagnóstico do problema energético e da demanda de energia no país”. O estudo foi elaborado então no sentido de “dar um retrato da demanda futura de energia e das alternativas possíveis para atender essa demanda: usina hidrelétrica, usina termoelétrica, pequenas usinas hidrelétricas e, é claro, a energia nuclear, que continua sendo uma alternativa técnica, com todos os problemas que tem, mas é uma alternativa técnica, tanto que ela funciona em Israel, na França, na Alemanha, em Angra dos Reis”.
      A atuação da Universidade seria então no sentido de estar “fornecendo elementos críticos para qualquer possível decisão que se venha a tomar”. Uma decisão como essa – a opção pelas PCNs – completou o reitor, “não se faz e não se fará mais nos gabinetes militares, como se fez nos anos 70”.
      Os conselheiros foram informados ainda pelo reitor de que a Unicamp, diante da repercussão tomada pela revelação do estudo pelo “Correio Popular”, recebeu cartas com pedidos de explicações de vários parlamentares, como os deputados José Dirceu e Luiz Gushkein (ministro chefe da Casa Civil e Secretário da Comunicação, respectivamente, do governo Lula). Todos deputados que solicitaram receberam cópias do Estudo, que também foi encaminhado aos presidentes da Câmara dos Deputados e Senado Federal, “de modo a não haver dúvidas quanto aos objetivos e intenções”.
      Apesar do reitor ter deixado claro que a Unicamp não trabalhava, e nunca trabalhou, com energia nuclear, foi lembrado na reunião, por alguns conselheiros, que havia a atuação isolada de pesquisadores ligados à instituição, com trabalhos de algum modo ligado ao tema. Caso de um professor que havia afirmado em sala de aula que tinha conhecimento de que algum grupo da Universidade estava desenvolvendo “filtros para beneficiamento de urânio”, como está assinalado na ata da 31a Sessão Ordinária. Diante dessa manifestação o reitor voltou a afirmar não havia linha de pesquisa em energia nuclear na Unicamp, e que não haveria qualquer possibilidade de se fazer qualquer ação institucional – ou seja, com a chancela da Universidade – sem o conhecimento de sua estrutura administrativa.
      O que não impedia que pesquisadores da Universidade continuassem sendo procurados por membros do setor nuclear para alguma consulta. Como no caso relatado em outra reportagem de minha autoria, “Projeto prevê navio nuclear na Amazônia”, de 13 de julho de 1993, ainda no “Correio Popular”.
      Na reportagem relatei como especialistas da Unicamp haviam sido consultados sobre a possibilidade técnica de construção de uma usina flutuante de geração de energia nuclear, para abastecimento de comunidades isoladas na Amazônia, que não eram atendidos pela rede ou sofriam cortes constantes no sistema de fornecimento de eletricidade. Assim, a instalação de uma PCN em um navio também utilizaria, provavelmente, a tecnologia que vinha sendo desenvolvida no Centro Experimental de Aramar, em Iperó.
      O professor Ennio Peres da Silva, do Instituto de Física da Unicamp, foi um dos especialistas consultados informalmente sobre a viabilidade técnica de uma usina nuclear flutuante. A usina ficaria estacionada durante um dia em cada comunidade, onde promoveria eletrólise (quebra) das moléculas de determinada quantidade de água. O hidrogênio resultante do processo ficaria depositado em tanques, para ser depois queimado, gerando eletricidade.
      O professor Peres ressaltou que tecnicamente o processo era viável, pois a tecnologia do hidrogênio estava avançando. Entretanto, o especialista deixou claro que questionava a alternativa de suprimento energético de comunidades isoladas da Amazônia por usina nuclear flutuante. Os especialistas da Unicamp não seriam mais consultados a respeito. Na edição de 12 de janeiro de 1992 – antes portanto da revelação do Estudo sobre as PCNs – este jornalista havia publicado matéria no mesmo “Correio Popular”, com afirmações do capitão-de-mar-e-guerra Carlos Pierantoni Gamboa, de que existia a “idéia embrionária” de implantação de PCNs em regiões como Amazônia e Nordeste, com menores custos ambientais do que as hidrelétricas que promovem grandes alagamentos.
        
CONVÊNIO “CONFIDENCIAL” COM A CESP

      No meio da polêmica sobre o eventual programa de PCNs, que se arrastou por meses, também se revelou a existência de uma parceria entre a Copesp e a CESP – Companhia Energética de São Paulo, uma das estatais de energia que seriam depois privatizadas.
      Em sessão no Seminário Internacional sobre Hidrovias, a 22 de setembro de 1992 (dois dias depois da reportagem no “Correio Popular” sobre o Estudo das PCNs), no Memorial da América Latina, em São Paulo, diante de platéia de técnicos brasileiros e de outros países latinoamericanos, o presidente da CESP, Saulo K. Rodrigues, admitiu a hipótese de a estatal estudar a geração de eletricidade via energia nuclear, em função do esgotamento das fontes tradicionais de geração energética em território paulista.
      Na prática, a CESP e a Copesp haviam assinado, a 22 de julho de 1992, um Convênio de Cooperação Técnica e Científica. As negociações para o estabelecimento do Convênio tiveram a participação da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República. O convênio foi assinado pelos presidentes da CESP, Saulo K.Krichanã Rodrigues, e da Copesp, almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva.
      De acordo dom a Cláusula Quarta do Convênio, o programa de cooperação técnica e científica estabelecido “será tão amplo quanto for necessário ou desejável, incluindo a realização de estudos e pesquisas, teóricos ou aplicados, o desenvolvimento de produtos, o intercâmbio de pessoa, administração de cursos e de programas de treinamento, a realização de estágios e quaisquer outras atividades julgadas de interesse ou de conveniência pelas partes”. O convênio previa a realização de projetos e atividades, cada um deles com a necessidade de estabelecimento de um Instrumento Aditivo. A Cláusula Vigésima-Primeira era enfática: “O presente Convênio tem a classificação de CONFIDENCIAL e não será publicado em Diário Oficial, em conformidade com o disposto no Decreto no 79.099, de 6 de janeiro de 1977”.
      Pelo debate acirrado em torno do projeto da CESP de uma termelétrica em Paulínia, o convênio da estatal com a Copesp contribuiu para esquentar a polêmica sobre as PCNs. A parceria foi interrompida, após a sessão da Assembléia Legislativa que discutiu o tema, dia 26 de novembro de 1992.
      Diante de toda polêmica criada, o programa das PCNs acabou ficando esquecido por vários anos. A própria Copesp mudou de nome, em 1995, para Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP).
      E as suas atividades de pesquisa continuaram, no sentido do desenvolvimento de uma tecnologia nacional em várias áreas, inclusive a nuclear. No site do CTMSP na Internet está publicado – conforme pesquisa deste jornalista em janeiro de 2005 – entre outros um texto com “As vantagens das usinas Nucleares Comparativamente às usinas termoelétricas e hidrelétricas”. Afirma o texto, sobre quais seriam essas vantagens:
·        As usinas nucleares têm uma reserva energética muito maior do que as usinas termoelétricas, que dependem de combustível fóssil, em extinção; e as usinas hidrelétricas, que dependem das já escassas reservas hídricas em cotas elevadas.
·        As usinas nucleares acarretam agressão muito menor ao meio ambiente. As usinas termoelétricas são altamente poluentes e as usinas hidrelétricas, em geral, impactam fortemente o meio ambiente, devastando grandes áreas úteis à agricultura, com alagamentos.
      O texto no site do CTMSP (www.ctmsp.mar.mil.br) , ligado ao site do Ministério da Marinha, também faz uma comparação entre centrais a carvão e nucleares de 1300 MW. Destaque para o item “Emissão de CO2, de SO2 e NOx”. A central a carvão geraria 8,5 milhões de toneladas/ano de dióxido de carbono, 12 mil toneladas/ano de dióxido de enxofre e 6 mil toneladas/ano de óxidos de nitrogênio. A central nuclear geraria “zero” desses gases poluentes.
     
POR QUE DEBATER
     
      As declarações do ministro Eduardo Campos,em outubro de 2004, e as manifestações particulares de outros membros do governo federal deixam claro que a hipótese das PCNs como parte da matriz energética continua sendo considerada. É fundamental que esse debate venha à tona, no momento em que o Brasil terá de decidir, de uma vez por todas, qual caminho energético deseja seguir no século 21. Contribuir para essa reflexão constitui – repito – o objetivo desta pequena publicação. 


CAPÍTULO III
BRASIL, CELEIRO DE ENERGIAS RENOVÁVEIS

      A defesa da energia nuclear como boa opção de produção de eletricidade, e também como alternativa de prevenção do agravamento do efeito-estufa, é absolutamente inócua, sobretudo em um país como o Brasil, país dotado de impressionantes recursos naturais que o credenciam a ser um líder nato de energias renováveis.
       O estímulo às energias renováveis, também chamadas de energias alternativas, limpas ou brandas, é que deveria ser considerado estratégico em um país como o Brasil – e não a energia nuclear, “menina dos olhos” de muitos cientistas e militares que vêm nela um dos possíveis pilares para a consolidação do país e da sua soberania no cenário internacional.
      Afinal, os países altamente industrializados, que sempre utilizaram e agora estão abandonando a energia nuclear, estão caminhando progressivamente na direção das energias renováveis, através de investimentos consistentes e crescentes nessa área. Se efetivamente não quiser perder o bonde (solar) da história, o Brasil deveria é incrementar ainda mais os seus programas já existentes de energia renovável e de conservação e uso eficiente de energia.

O PANORAMA GLOBAL

      A corrida internacional até as energias renováveis está em curso acelerado, nos tão conturbados anos iniciais do século 21. Os atentados de 11 de setembro de 2001, a invasão do Afeganistão, a nova Guerra do Iraque, a paranóia internacional pela guerra química e biológica – todos essas circunstâncias reforçam a clara necessidade de se formular um novo modelo de convivência, uma nova civilização, que deve ter como um de seus pilares uma nova matriz energética, que não seja refém de combustíveis fósseis como o petróleo que, sabidamente, têm sido motivo de guerras e outros conflitos de ordem geopolítica que já deixaram vítimas demais, de todos os lados envolvidos.
      Esse cenário tem sido favorável à procura do novo Eldorado – as energias renováveis. As suas faces são vistas por todos os lados. Em maio de 2003 a Greenpeace Internacional, em parceria com a European Wind Energy Association, lançou o Vento Força 12 – Uma proposta para obter 12% da eletricidade mundial com energia eólica em 2020.
      A campanha iniciada na ocasião é favorecida pelo notável avanço da energia eólica em todo planeta. Apenas em 2002 foram instalados mais de 7 mil MW em energia eólica, conectados às respectivas redes de distribuição de eletricidade. A potência eólica instalada no planeta em 2003 atingiu 320.000 MW, correspondente à energia consumida por uma população de 16 milhões de pessoas.
      Mais de 70% da potência instalada em energia eólica estão na Europa, com destaque para a Dinamarca. Mas o avanço é global, e calcula-se que de 90 a 100 mil pessoas estão trabalhando no setor em 50 países de todas as regiões do mundo.
      Os participantes da campanha Vento Força 12 estimam que o investimento em energia eólica levaria à economia de 600 toneladas de dióxido de carbono por GWh (gigawatt/hora). Se os investimentos previstos para que 12% da matriz energética mundial derivassem da energia eólica em 2020, seriam evitadas então 1,8 bilhões de toneladas de CO2 anualmente até aquela data, podendo chegar a 4,8 bilhões de toneladas/ano evitadas até 2040. Vento Força 12 calcula ainda que poderiam ser criados até 2020 1,8 milhões de empregos em todas etapas relacionadas à indústria da energia eólica.
      O avanço da energia solar fotovoltaica também tem sido notável. Houve um crescimento nesse mercado de 20% ao ano em média na década de 1990. Entre 2000 e 2003 o aumento foi ainda maior, de 40% ao ano. A proximidade do prazo (2008-2012) para o cumprimento das metas do Protocolo de Kyoto será sem dúvida muito favorável a uma expansão ainda maior na energia solar fotovoltaica, eólica e outras fontes de energia renovável.
 
A LIDERANÇA DO BRASIL

      Pela utilização da fonte hidrelétrica na produção de mais de 90% de sua eletricidade, e pelo forte uso da energia da  biomassa no programa do álcool, o Brasil já tem um destaque em termos do uso de energias consideradas renováveis. Mas a sua liderança poderia ser ainda maior, o que o levaria a liderar um movimento global nesse sentido. O dossiê “Energia positiva para o Brasil”, entregue ao presidente Lula em novembro de 2004 pela Greenpeace, mostra o potencial brasileiro em várias áreas energéticas renováveis. O estudo foi elaborado, por encomenda da Greenpeace, por especialistas em várias áreas, vinculados a diversas universidades brasileiras. Um resumo do dossiê:
·        Energia solar fotovoltaica – A potência instalada atual é de 15 MWp, sendo 70% nas regiões Nordeste, Norte e Nordeste. Roberto Zilles, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, estima que é possível ampliar consideravelmente o potencial instalado. Ele cita a energia heliotérmica, que poderia beneficiar 20 milhões de pessoas, sobretudo no Nordeste.
·        Micro e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) – Em 2002 existiam, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), 345 PCHs no Brasil (somando 1.468 MW), e outras 42 estavam em construção (com 516 MW no total). Também havia 790 PCHs outorgadas, somando 1.255 MW.  As PCHs, como informa no dossiê Geraldo Lucio Tiago Filho, da Unifei/Itajubá,foram inseridas no Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (PROINFA/Eletrobrás), em condições de igualdade com a energia eólica, fotovoltaica e biomassa. A meta do PROINFA para as PCHs é a implantação de 1.100 MW até 2006. As PCHs são consideradas alternativa à grandes usinas hidrelétricas, que provocam alagamento, impacto ambiental considerável e deslocamento de pessoas – calcula-se que mais de 300 mil pessoas já tiveram de deixar seus locais de origem em território brasileiro por causa do alagamento provocado por grandes usinas hidrelétricas.     
·        Segundo Murilo Tadeu Werneck Fagá e Hélvio Rech, da Universidade de São Paulo, no mesmo dossiê “Energia positiva para o Brasil”, o potencial eólico brasileiro, de acordo com os dados disponíveis, seria de 20 mil a 143 mil megawatts. A ANEEL estima em 60 mil MW, o que já seria significativo. Os locais mais indicados, segundo os autores, seriam pontos do litoral das regiões Norte e Nordeste, onde a velocidade do vento a 50 metros do solo supera oito metros por segundo. Mas também há um bom potencial em Santa Catarina, Vale do São Francisco, litoral sul do Rio Grande do Sul, e do oeste do Paraná ao sul do Mato Grosso do Sul. Atualmente a potência eólica instalada é de apenas 26,8 MW. O PROINFA projeta uma inserção da energia eólica, e demais renováveis, na matriz energética brasileira de  3.300 MW  em 20 anos. As fontes eólicas seriam um terço disso.
·        Em termos da biomassa, o Brasil se destaca pela produção de álcool a partir da cana-de-açúcar. O Centro Nacional de Referência em Biomassa (CENBIO) calcula que o potencial energético do setor sucroalcooleiro do Brasil seria de 3.852 MW, considerando uma safra de 267 mil toneladas de cana, referente à safra de 2000/2001.O engenheiro Carlos Eduardo Machado Paletta, da USP, entende que a sinalização do governo federal favorável ao biodiesel “poderá se tornar um novo e importante mercado para o setor sucroalcooleiro.  A introdução do B5 (óleo diesel com 5% de biodiesel misturado), em todo país, necessitará de 1,85 bilhão de litros de biodiesel, com a utilização de 481 milhões de litros de etanol/ano. Esse fator sinaliza para um incremento na área de cultivo de cana de aproximadamente 100 mil hectares”. A agroindústria sucroalcooleira já emprega 1 milhão de pessoas e reúne 60 mil produtores rurais. O setor está presente em 960 municípios brasileiros. A produção de energia elétrica a partir do bagaço da cana também avança muito no país, e mais de 2 GW já são gerados nas usinas. 
·         Outra modalidade energética promissora é a eletricidade a partir do biogás gerado em aterros sanitários. Segundo Mark Zulauf, engenheiro civil coordenador do aterro sanitário de Salvador (BA), um aterro com 1 milhão de toneladas (equivalente a um município com 300 mil habitantes) pode ter uma potência de 1 MW de energia elétrica por uma década. O potencial de geração de energia em 1994 era de 386 MW para os resíduos sólidos urbanos, segundo o Primeiro Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas de Gases de Efeito Estufa, elaborado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Considerando o crescimento anual de resíduos sólidos urbanos em 2%, o potencial de geração em 2005, considerando todos os municípios brasileiros, seria de 471 MW. Mas também existe a possibilidade de utilização do biogás derivado do esterco bovino. O “Estudo de potencial de geração de energia renovável proveniente dos aterros sanitários nas regiões metropolitanas do Brasil”, realizado em 2002 pela ESALQ/USP de Piracicaba, em convênio com o Ministério do Meio Ambiente, apurou um potencial de geração de energia elétrica com base no biogás de 350 MW em 2005.
·        O Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (PROCEL) foi criado em 1985, com coordenação da Eletrobrás. O PROCEL objetiva a difusão e desenvolvimento de tecnologias e práticas visando o uso consciente e a conservação de energia. Entre 1994 e 2004 foram investidos pelo PROCEL quase R$ 300 milhões. O investimento resultou na economia com a construção de possíveis novas usinas de cerca de cerca de R$ 10 bilhões. Jamil Haddad, da Universidade Federal de Itajubá, entende que o potencial de conservação de energia é muito grande no Brasil, considerando o avanço das tecnologias no setor.

      Os primeiros passos já foram dados. Existem múltiplas iniciativas, inclusive do governo Lula, no caso do biodiesel, apontando para um incremento do potencial brasileiro em energia renovável, derivada da biomassa, eólica, solar fotovoltaica, PCHs e outras fontes. Todas, em sua maioria, mais baratas e melhores ambientalmente do que a energia nuclear. Seria muito bom que o Brasil assumisse, como o governo Lula deseja, uma cadeira do Conselho de Segurança da ONU, mas não como uma aspirante a potência nuclear, e sim como grande líder global da energia renovável.
     

CAPÍTULO IV
O BRASIL E AS ARMAS NUCLEARES

      O temor de que os militares brasileiros se apropriassem da tecnologia nuclear para o desenvolvimento de armas atômicas sempre cercou – aos olhos de setores da comunidade internacional – o Programa Nuclear Brasileiro. Esse foi o argumento utilizado pelo então presidente republicano Gerald Ford, e também pelo candidato democrata Jimmy Carter, para os Estados Unidos se operem ao Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, firmado em 1975 e extinto em novembro de 2004, depois de 30 anos.
      Os contatos de alguns militares brasileiros com setores dos governos do Iraque e do Irã, em torno de uma possível cooperação na área nuclear, naturalmente alimentaram as especulações internacionais sobre possíveis intenções bélicas ligadas ao Programa Nuclear Brasileiro. A decisão do presidente Fernando Collor de Mello, que em 1992 liderou pessoalmente uma operação pelo fechamento de um possível campo de provas nucleares na Serra do Cachimbo  (PA), contribuiu para incrementar as especulações.
      O motivo alegado por pequena parcela dos militares brasileiros, que durante o regime autoritário sonhou com armas nucleares, era o de que os artefatos poderiam ser empregados como dissuasão. Ou seja, seriam armas para impedir que o território brasileiro fosse atacado por potência estrangeira. 
      As especulações voltaram com toda força, ao longo de 2004, no momento em que uma comissão da AIEA faria inspeção em instalações em Rezende (RJ). A resistência a que essa comissão inspecionasse certas áreas das instalações, sob o argumento de sigilo tecnológico, de novo alimentou a posição dos setores que vêm propósitos bélicos na área nuclear brasileira.
      Do mesmo modo, a base de Alcântara, que o Brasil mantém no Maranhão, para o lançamento de foguetes fabricados com tecnologia nacional, também é citada por alguns segmentos como indicativo de intenções bélicas na área nuclear brasileira. O argumento desses segmentos é o de que os foguetes poderiam ser adaptados para transportar artefatos nucleares.
      A adesão do Brasil, em 1995, ao Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR), contribuiu para afastar alguns dos fantasmas ligados à possível utilização da base de Alcântara como plataforma bélica. O MTCR proíbe que os países-membro utilizem a tecnologia de lançamento de foguetes para o lançamento anexo de armas, incluindo nucleares.
      Na prática, de fato, o Brasil sempre foi, no campo diplomático, absolutamente contrário à proliferação de armas nucleares.  O Brasil foi um dos primeiros países a assinar e ratificar o Tratado para a Proibição Completa dos Testes Nucleares (CTBT), em julho de 1998. A negociação para a adoção do CTBT foi concluída em 1996, e em 2005 o Tratado já conta com a assinatura de 174 membros, com 120 ratificações.
      O Brasil igualmente aderiu, em setembro de 1998, ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que havia proíbe a produção de novas armas nucleares. Durante muito tempo o Brasil havia negado a ratificar o TNP, considerando que ele era discriminatório.

AS BASES NO BRASIL PARA DETECTAR ARMAS NUCLEARES

      Várias outras iniciativas internacionais tiveram a participação ativa da comunidade diplomática brasileira, no sentido da erradicação das armas nucleares do planeta Terra. Em junho de 1998 o Brasil se associou a outros sete países (África do Sul, Egito, Eslovênia, Irlanda, México, Nova Zelândia e Suécia),visando a elaboração conjunta de uma Declaração Ministerial que recebeu o título “Em direção a um mundo livre de armas nucleares: a necessidade de uma nova agenda”.
      O documento propôs uma série de medidas voltadas para o completo desarmamento nuclear global, nos termos do TNP. O Brasil igualmente vem apresentado desde 1996, à Assembléia Geral da ONU, projeto de resolução na linha de reconhecimento das zonas de desnuclearização criadas por documentos como o Tratado de Tlatelolco, de 1967.
      Novos testes nucleares, como os realizados pela Índia e Paquistão, em maio e junho de 1998 – que quase levaram os dois países a uma guerra de conseqüências inimagináveis – vêm sendo também duramente condenados pelo Brasil.
      Outro fato significativo, demonstrando a disposição brasileira para a erradicação das armas nucleares, é a instalação no país de uma rede de bases para detectar possíveis novos testes com armas atômicas, na atmosfera ou subterrâneos.
      São seis bases, associadas a uma rede global de monitoramento de testes no nucleares, idealizada como parte do Tratado para a Proibição Completa dos Testes Nucleares. A implantação da rede e execução dos demais termos do CTBT voltou ao primeiro plano da agenda internacional após o acordo firmado em maio de 2002 por Estados Unidos e Rússia, objetivando a eliminação de parte expressiva de seus arsenais de armas nucleares.
      O acordo foi muito influenciado pelo clima criado pelos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e Washington. EUA e Rússia ainda têm cerca de 6 mil armas nucleares cada, que seriam suficientes para destruir a vida na Terra milhares de vezes, se é que isso é possível. O acordo estabelecido entre os dois países prevê a eliminação de até 2 mil armas cada, acelerando a destruição das ogivas produzidas e acumuladas durante a Guerra Fria.
      As bases no Brasil foram projetadas para instalação em Brasília (DF), Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Pitinga (AM). 2005 é o prazo fatal, previsto no CTBT, para implantação da rede internacional, prevista para ter 320 bases de detecção de testes atômicos. Os Estados Unidos terão 39 bases, a Federação Russa 32 unidades, seguindo-se Austrália (21), França (17), Canadá (16), Japão (10), Argentina (9), Nova Zelândia e Chile (7), Brasil, Noruega e Indonésia (seis unidades cada).   
      No Brasil as bases foram projetadas para áreas já existentes em institutos de pesquisa. Caso do Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD), no Rio de Janeiro, projetado para ter uma estação de radionuclídeos. São equipamentos capazes de detectar se os elementos radioativos presentes na atmosfera são derivados de explosões de armas nucleares. Uma estação com as mesmas características foi projetada para Pernambuco, em área controlada pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN).
      No Distrito Federal foram projetadas bases para áreas da Universidade de Brasília. Uma base utilizando a tecnologia de infrassons, capaz de detectar se houve alguma explosão nuclear a partir do registro do comprimento de ondas sonoras. A outra base, usando a tecnologia de detecção sismológica. Situada a 100 metros de profundidade, essa unidade pode apurar se houve uma explosão atômica, pela avaliação de eventuais abalos sísmicos. Outras duas estações sismológicas, com mesmo perfil, foram projetadas para o Rio Grande do Norte e para Pitinga, no Amazonas.
      Todas as informações coletadas nas bases brasileiras, assim como das demais unidades da rede internacional, têm transmissão para o órgão que administra o CTBT desde Viena, na Áustria, onde está sediada a Associação Internacional de Energia Atômica (AIEA).

BRASIL: COMO SER UM GUARDIÃO DA PAZ
 
      Todos esses episódios demonstram como, na essência, a sociedade brasileira apóia a paz mundial, que apenas será alcançada em plenitude com o fim da corrida armamentista, particularmente no que tange às armas nucleares. Em coerência com essa posição o Brasil deveria ser, também, o grande líder da busca de fontes energéticas renováveis para a modificação da matriz energética mundial, até a erradicação de fontes extremamente poluentes – como as baseadas nos combustíveis fósseis – ou muito perigosas, como a energia nuclear.
      Afinal, de fato a energia nuclear sempre foi associada, de algum modo, ao seu eventual uso bélico. Isso porque a energia nuclear foi apresentada à humanidade da forma mais negativa possível – a forma das grandes explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a 6 e 9 de agosto de 1945, em episódios que selaram o final da 2a Guerra Mundial. Foi um custo altíssimo – morreram 190 mil pessoas diretamente em Hiroshima e 100 mil em Nagasaki, além das milhares de mortes que vieram depois, na forma de câncer e outras doenças.
      As explosões nas cidades japonesas inauguraram a Era Nuclear e, além disso, a Guerra Fria, liderada por Estados Unidos e a então União Soviética. Durante a Guerra Fria, que orientou as relações internacionais desde final da década de 1940 até início dos anos 1990, EUA e URSS protagonizaram corrida armamentista que resultou na produção de 60 mil ogivas nucleares. O dinheiro gasto nessa corrida, da qual outros países participaram (como Inglaterra, França, China, Israel, Índia e Paquistão), está estimado em cerca de US$ 17 trilhões, quantia absolutamente suficiente para ter erradicado a fome e a miséria da fase da Terra, além de ter evitado a maior parte da degradação ambiental. 
      Para evitar que uma nova corrida semelhante aconteça, o investimento  fabuloso em Ciência e Tecnologia na área da energia nuclear deveria ser paralisado. O Brasil poderia dar sua contribuição, resolvendo seguir sua vocação para guardião da paz e direcionando seus poucos recursos de pesquisa em estudos e projetos concretos de fomento às energias renováveis, como fotovoltaica, eólica, de biomassa e biocombustível. Não é pedir demais a contribuição nesse sentido do governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, que em 2003 e 2004 teve o mérito de reforçar com ênfase a questão do combate à fome e à miséria na agenda global. O governo federal pode completar esse gesto meritório com o investimento prioritário em energias renováveis, que contribuirão e muito para um mundo mais pacífico.
      A busca da paz mundial tornou-se imperativa, ainda mais após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. Desde então falou-se, como nunca, no terrorismo nuclear, como uma das hipóteses mais duras de uma eventual proliferação do terrorismo global. A construção de unidades de usinas atômicas constitui, infelizmente, uma atração a mais para o mercado do terrorismo, por serem alvos potenciais em ataques terroristas. É mais um forte motivo para que o Brasil, orgulhoso de sua biodiversidade natural, cultural, religiosa e étnica, aposte em outras vias, como fontes energéticas que certamente seriam absolutamente livres de ameaças terroristas. Os setores que apostam na energia nuclear em termos estratégicos, considerando a manutenção da “segurança nacional”, também deveriam considerar esses cenários.            


PALAVRAS FINAIS

VÍTIMAS SILENCIOSAS DA
 ENERGIA NUCLEAR: NUNCA MAIS
     
     Os grandes desastres com a energia nuclear, como as explosões em Hiroshima e Nagasaki, e depois os acidentes nas usinas nucleares (o primeiro foi em Windscale, Inglaterra, em 1952, e depois ocorreram mais de 300 em 40 anos), com destaque para o ocorrido em Chernobyl, são os mais comentados na mídia por seu impacto ambiental e em termos de perdas de vidas humanas.
      Houve ainda o acidente com o Césio 137, em Goiânia, em setembro de 1987 – poucos dias depois que o presidente José Sarney anunciara que o Brasil dominou a tecnologia de enriquecimento de urânio. Uma cápsula de Césio 137 estava em aparelho de radioterapia de um hospital fechado, e que foi levado a um ferro velho. Várias pessoas tiveram contato com a cápsula e foram contaminadas, com ao menos 12 mortes (reconhecidas oficialmente) - as vítimas são centenas no total. O acidente – que ainda gerou toneladas de lixo radioativo – lembrou  ao Brasil como seria catastrófico um acidente com fonte nuclear maior. O Departamento de Medicina Legal da Unicamp atuou na perícia relacionada às primeiras mortes derivadas do acidente.
      Todos esses casos, de acidentes com grandes e pequenas fontes radioativas, são alertas, infelizmente a altíssimo custo, sobre o risco associado à energia nuclear. Mas a sociedade brasileira também precisa se lembrar das vítimas silenciosas da energia nuclear, que às vezes não aparecem na mídia. São os casos dos moradores das cidades onde ocorrem operações ligadas ao ciclo do combustível nuclear, como os de Caldas (MG) e Caetité (BA).
      Entre 1980 e 1995 o pequeno município de Caldas, muito conhecido por seus doces e sua paisagem bucólica, sediou o principal complexo de extração de urânio do Brasil, sob supervisão da Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Depois o complexo do Campo do Cercado foi perdendo a sua posição, enquanto crescia a importância da extração de urânio em Caetité, na Bahia.
      Desde a década de 1980, portanto, os moradores de Caldas conviveram com os impactos da extração de urânio, que deixou uma herança incômoda para o município. O Campo do Cercado passaria a abrigar mais de 10 mil toneladas de Torta II, composto que não é qualificado como lixo atômico, mas é sub-produto de outras atividades do processo do combustível nuclear. O complexo também passaria a armazenar milhares de toneladas de outros rejeitos e resíduos de minério com baixo teor de urânio.
      Com a autorização da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), para que o complexo assumisse outras atividades, como o processamento de monazita, a inquietação voltou a Caldas.
      A mesma inquietação floresce entre os moradores de Caetité, onde a exploração e beneficiamento do urânio se intensificou a partir do final da década de 1990. O projeto foi efetivamente implantado em 1999, no Complexo Uranífero Minero-Industrial de Lagoa Real, em uma área de 1,2 mil hectares. A meta é produção de pelo menos 300 toneladas por ano de concentrado de urânio, o Yellow Cake, material base para o enriquecimento e desenvolvimento do combustível utilizado em usinas nucleares, como as de Angra I e II – e a III, se o projeto for levado à frente. Em novembro de 2004 o complexo alcançou a produção de 1 mil toneladas de yellow cake.As estimativas são de que as reservas existentes em Caetité seriam suficientes para abastecer 10 reatores semelhantes ao de Angra 2 por um século.
      Entre 20 e 23 de abril de 2000 houve vazamento de licor uranífero, da Bacia de Deposição e Reciclagem de Efluentes Líquidos para a argila. O acidente foi denunciado por 9 trabalhadores da INB, que encaminharam o caso ao Ministério Público. O caso foi muito discutido, chegando à Comissão de Proteção ao Meio Ambiente da Assembléia Legislativa da Bahia e à Câmara Municipal de Caetité. O episódio alimentou as reservas na comunidade local, e entre ONGs como o Gamba (Grupo Ambientalista da Bahia).
      Esta tem sido a história não falada do Programa Nuclear Brasileiro, desde as suas fontes, os depósitos de urânio em Minas Gerais, Bahia... O próximo passo é a mina projetada para Santa Quitéria, no Ceará.
      Antes de decidir sobre a continuidade do programa nuclear, deveria pensar em reformulações na própria CNEN, como vêm defendendo há anos especialistas em Direito Ambiental como Paulo Affonso Leme Machado. Para ele, e outros da área, deveria ser alterada a legislação que permite à CNEN ser ao mesmo tempo incentivadora e fiscalizadora da energia nuclear no país.
       Do mesmo modo, deveria ser olhada com mais cuidado a situação das milhares de pequenas fontes radioativas espalhadas pelo país. Estas fontes são devidamente monitoradas e manejadas?
      E, claro. O Brasil deveria é incrementar suas potencialidades em energia renovável. E mais: toda a atual estrutura relacionada à energia nuclear poderia ser convertida, passando a ser utilizada para a busca de energias renováveis. Passos importantes já foram dados, como os citados nesta publicação. O governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva tem a oportunidade histórica de dar ao Brasil a liderança indiscutível no movimento global por uma nova matriz energética, livre das poluentes e geopoliticamente conflituosas fontes fósseis, e livre da energia nuclear para geração de eletricidade (e de armas). Seria um gesto humanitário, ético e ambientalmente correto de proporções incomensuráveis para a história do belo e sofrido e amado planeta Terra.