Por José Pedro Martins
Por que não falamos o que pensamos sobre uma pessoa enquanto ela está viva? Por que a demora, por que o gesto adiado, a confissão tardia? Pois juro que eu gostaria de dizer o que vem a seguir cara a cara, olho no olho, com Elias Boaventura, que morreu sábado, dia 7 de janeiro, aos 74 anos, na Piracicaba que ele – nós – aprendemos a amar tanto.
Eu não sabia quase nada de nada, ou não sabia menos ainda do que não sei, quando me transferi da PUC do Rio para concluir jornalismo na Unimep. Era 1980, finalzinho do regime militar, a ditadura consciente de que ia acabar, mas muitos dos privilegiados por ela não queriam perder suas benesses, seus pequenos reinozinhos conquistados com o sangue de tanta gente.
Inocente de tudo, ou de quase tudo, eu não tinha a menor idéia de que estava prestes a mergulhar no olho no furacão. E que vertigem, e que viagem, e que orgulho por ter vivido aqueles momentos. Piracicaba tinha na ocasião dois visionários no poder. Na Prefeitura, João Herrmann Neto, e como reitor da Universidade Metodista, o mineiro Elias Boaventura, aquele que gostava muito do ditado de sua terra: “Macaco velho não mete a mão em cumbuca”. Dois terremotos, que sacudiram corações e mentes de milhares de jovens como eu na época.
Esses dois caras tiveram a coragem de bancar a realização de dois – não apenas um, mas dois – Congressos Nacionais da UNE, uma das entidades que mais simbolizavam a resistência de duas décadas contra o regime dos generais. Piracicaba tomada, ocupada, por universitários de toda parte, milhões de sonhos represados, quando o movimento estudantil ainda era um espelho de belos, ousados, destemidos sonhos coletivos.
Herrmann propiciou a infra, o metodista Boaventura deu as bênçãos da instituição universitária para os dois congressos, marcados por movimentos como o “Javier é brasileiro” (sobre o presidente da UNE Javier Alfaya, nascido na Espanha, ameaçado de expulsão do país pelos militares). Aldo Rebelo, atual ministro dos Esportes e até ontem protagonista da controvérsia a respeito do polêmico projeto do novo Código Florestal, foi eleito no Congresso de 1980 e recebido ene vezes por Elias na reitoria. Trotskistas do Liberdade e Luta, comunistas do B, filiados e simpatizantes do Partidão, membros do MR-8 do Hora do Povo, todos os grupos que faziam a efervescência do movimento estudantil conviviam, discutiam, negociavam, brigavam e às vezes namoravam naqueles dias vermelhos, verde-amarelos, azuis etc.
Eu não sabia quase nada de nada, ou não sabia menos ainda do que não sei, quando me transferi da PUC do Rio para concluir jornalismo na Unimep. Era 1980, finalzinho do regime militar, a ditadura consciente de que ia acabar, mas muitos dos privilegiados por ela não queriam perder suas benesses, seus pequenos reinozinhos conquistados com o sangue de tanta gente.
Inocente de tudo, ou de quase tudo, eu não tinha a menor idéia de que estava prestes a mergulhar no olho no furacão. E que vertigem, e que viagem, e que orgulho por ter vivido aqueles momentos. Piracicaba tinha na ocasião dois visionários no poder. Na Prefeitura, João Herrmann Neto, e como reitor da Universidade Metodista, o mineiro Elias Boaventura, aquele que gostava muito do ditado de sua terra: “Macaco velho não mete a mão em cumbuca”. Dois terremotos, que sacudiram corações e mentes de milhares de jovens como eu na época.
Esses dois caras tiveram a coragem de bancar a realização de dois – não apenas um, mas dois – Congressos Nacionais da UNE, uma das entidades que mais simbolizavam a resistência de duas décadas contra o regime dos generais. Piracicaba tomada, ocupada, por universitários de toda parte, milhões de sonhos represados, quando o movimento estudantil ainda era um espelho de belos, ousados, destemidos sonhos coletivos.
Herrmann propiciou a infra, o metodista Boaventura deu as bênçãos da instituição universitária para os dois congressos, marcados por movimentos como o “Javier é brasileiro” (sobre o presidente da UNE Javier Alfaya, nascido na Espanha, ameaçado de expulsão do país pelos militares). Aldo Rebelo, atual ministro dos Esportes e até ontem protagonista da controvérsia a respeito do polêmico projeto do novo Código Florestal, foi eleito no Congresso de 1980 e recebido ene vezes por Elias na reitoria. Trotskistas do Liberdade e Luta, comunistas do B, filiados e simpatizantes do Partidão, membros do MR-8 do Hora do Povo, todos os grupos que faziam a efervescência do movimento estudantil conviviam, discutiam, negociavam, brigavam e às vezes namoravam naqueles dias vermelhos, verde-amarelos, azuis etc.
Uma festa de utopia, quase abortada pelo atentado no Riocentro, em 30 de abril de 1981, no show para o Dia do Trabalhador. O coronel Dickson Grael, pai de Lars e Torben, e que questionou desde o primeiro momento a versão oficial sobre o atentado no Rio de Janeiro, esteve na Unimep para uma conferência, a convite imaginem de qual reitor? Em 1982, ano das primeiras eleições diretas para governadores depois de duas décadas, novo Congresso da UNE em Piracicaba, com a eleição da primeira mulher para a presidência, Clara Araújo, ligada ao PC do B, enquanto Adelmo Alves Lindo, o "Baiano", que fora presidente do DCE da Unimep, escolhido como vice.
Era impossível sair ileso desse tsunami político que varreu Piracicaba da colina à Rua do Porto. O epicentro era, claro, a Unimep, que vivia um ambiente totalmente favorável ao novo, ao futuro, ao diferente, pela ação pessoal, pela coragem total de Elias, esse profeta de Manhuaçu que talvez não tenha tido, em vida, a valorização que deveria receber no sentido do quanto contribuiu para a redemocratização do Brasil.
Logo que assumiu a reitoria, levou pessoas brilhantes, absolutamente apaixonadas pela justiça, amantes da liberdade sem limites, para trabalhar na Unimep. Nomes como os de Hugo Assmann, Dermi Azevedo, muitos deles que tiveram que se exilar e/ou sentiram na pele o ódio e a violência dos lacaios da ditadura. Mas pessoas que amavam o Brasil, e que também desejavam dias melhores para toda a sofrida e encantadora América Latina.
Era o momento mais fértil, mais fascinante, mais perturbador da Teologia da Libertação. Setores importantes de muitas Igrejas cristãs, a Metodista entre elas, influenciados por essa nova visão de mundo, pela opção preferencial pelos pobres, pela justiça social no centro das prioridades, no topo das agendas públicas. A democracia política não adiantaria se a brutal desigualdade e a violência institucionalizada continuassem em solo latinoamericano.
Alguns dos maiores nomes da Teologia da Libertação, no auge da esperança e da inquietação que provocava (dependendo de onde se estivesse em termos ideológicos), participaram de palestras, cursos ou encontros mais reservados na Unimep. Leonardo Boff entre eles.
Também passaram por ali libertários como Paulo Freire, que nos brindaram com sua inteligência e generosidade (que tristeza que vi nos seus olhos, e outubro de 1983, quando ele abriu o “Estadão” e viu a notícia da execução de Maurice Bishop, presidente socialista de Granada, ocupada – de novo! – por militares norteamericanos, na Operação Fúria Urgente).
Era impossível sair ileso desse tsunami político que varreu Piracicaba da colina à Rua do Porto. O epicentro era, claro, a Unimep, que vivia um ambiente totalmente favorável ao novo, ao futuro, ao diferente, pela ação pessoal, pela coragem total de Elias, esse profeta de Manhuaçu que talvez não tenha tido, em vida, a valorização que deveria receber no sentido do quanto contribuiu para a redemocratização do Brasil.
Logo que assumiu a reitoria, levou pessoas brilhantes, absolutamente apaixonadas pela justiça, amantes da liberdade sem limites, para trabalhar na Unimep. Nomes como os de Hugo Assmann, Dermi Azevedo, muitos deles que tiveram que se exilar e/ou sentiram na pele o ódio e a violência dos lacaios da ditadura. Mas pessoas que amavam o Brasil, e que também desejavam dias melhores para toda a sofrida e encantadora América Latina.
Era o momento mais fértil, mais fascinante, mais perturbador da Teologia da Libertação. Setores importantes de muitas Igrejas cristãs, a Metodista entre elas, influenciados por essa nova visão de mundo, pela opção preferencial pelos pobres, pela justiça social no centro das prioridades, no topo das agendas públicas. A democracia política não adiantaria se a brutal desigualdade e a violência institucionalizada continuassem em solo latinoamericano.
Alguns dos maiores nomes da Teologia da Libertação, no auge da esperança e da inquietação que provocava (dependendo de onde se estivesse em termos ideológicos), participaram de palestras, cursos ou encontros mais reservados na Unimep. Leonardo Boff entre eles.
Também passaram por ali libertários como Paulo Freire, que nos brindaram com sua inteligência e generosidade (que tristeza que vi nos seus olhos, e outubro de 1983, quando ele abriu o “Estadão” e viu a notícia da execução de Maurice Bishop, presidente socialista de Granada, ocupada – de novo! – por militares norteamericanos, na Operação Fúria Urgente).
Período de fundação da Editora Unimep. "Fé Cristá e Ideologia". de 1981, reproduzindo conteúdo de simpósio com o mesmo tema realizado no mesmo ano, foi um dos primeiros livros editados, com artigos, entre outros, de Jacy Maraschin, Zwinglio Mota Dias, Irma Passoni e Rubem Alves, nomes representativos da renovação do pensamento cristão.
Grande parte da agitação acontecia no campus central da Unimep, naquele tempo em que muitas Universidades ainda tinham pelo menos um de seus campi no centro das cidades onde estão localizadas, no meio do povo, no contato direto com o suor, as tristezas, as dúvidas e as alegrias do cidadão comum, e não como agora, em que majoritariamente estão distantes, geográfica e espiritualmente, das demandas reais das pessoas. O curso de Jornalismo ainda funcionava ali, no campus Centro, e pudemos assim respirar toda aquela magia, aquele frescor de almejados novos tempos.
Só para se ter uma idéia do que era o Jornalismo da Unimep operando nessas condições, nesse cenário singular. Em um determinado período, a Universidade tinha quatro jornais regulares, todos funcionando ao mesmo tempo, para diferentes públicos. O Acontece (informativo que ainda está circulando na Unimep), com notícias do cotidiano da própria Universidade; o Igreja Hoje, com informações sobre o que se passava na ebulição do cristianismo sacudido pela Teologia da Libertação, sempre com uma perspectiva ecumênica; o Jornal Popular, experiência muito incomum, que tinha sua pauta discutida e aprovada por lideranças comunitárias; e aquele que me tocava muito forte, o jornal Opção, um semanário com artigos, reportagens e notícias de atualidades, mas com foco especial na luta dos movimentos sociais, dos leigos e agentes de pastoral comprometidos com mudanças radicais nas estruturas sociais injustas e geradoras de morte.
Como tive o enorme privilégio de trabalhar nessas três últimas publicações, posso não ter a neutralidade suficiente para comentar o que elas significavam, pelo que tinham de diferencial em relação ao que geralmente se produzia em jornalismo universitário. Mas tenho que dizer que foi contagiante, apaixonante, pelo que tinham de material crítico, questionador.
É óbvio que uma movimentação dessas (com a Unimep apoiando e sediando eventos da OLP à Associação dos Favelados de Piracicaba, de solidariedade aos sandinistas da Nicarágua ao movimento das diretas-já, com a presença do deputado Dante de Oliveira) não iria passar desapercebida, incólume aos olhos dos nostálgicos de tempos mais calmos, aqueles da paz dos cemitérios. Elias já havia tido embates com nomes poderosos, como o ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, conterrâneo de Manhuaçu.
E a 12 de janeiro de 1985 Elias Boaventura foi destituído, arrancado da reitoria da Unimep por força de um golpe de grupo mais à direita entre os metodistas. Pois não é que a Universidade em peso, ou a grande maioria dela, se mobilizou pela volta de Elias à reitoria? Alguém conhece outro caso de estudantes universitários nas ruas, ocupando o campus, pelo retorno de algum reitor exonerado? Foi o que aconteceu naquela hora, dessas que mexem com os nervos e músculos da gente.
Elias acabou voltando, a Unimep retormou o seu curso revolucionário enquanto ele esteve no cargo. Quando cumpriu o mandato, foi substituído pelo seu vice, Almir de Souza Maia (que também havia sido deposto com Elias), que levou a Unimep, em termos de ensino, pesquisa e extensão, para um alto patamar no conjunto das universidades particulares brasileiras.
Boaventura continuou sua trajetória de disseminador de boas notícias, sempre trabalhando em educação, a plataforma essencial das grandes transformações. Assmann, Herrmann Neto e, agora, Boaventura. Que pena que eles já foram. Mas “não tem problema não, uai”, na frase famosa e muito repetida do eterno reitor, do cristão legítimo, enquanto fazia um movimento circular com a mão direita em direção ao interlocutor. O sonho ainda envolve, aquece e estremece o coração.
Grande parte da agitação acontecia no campus central da Unimep, naquele tempo em que muitas Universidades ainda tinham pelo menos um de seus campi no centro das cidades onde estão localizadas, no meio do povo, no contato direto com o suor, as tristezas, as dúvidas e as alegrias do cidadão comum, e não como agora, em que majoritariamente estão distantes, geográfica e espiritualmente, das demandas reais das pessoas. O curso de Jornalismo ainda funcionava ali, no campus Centro, e pudemos assim respirar toda aquela magia, aquele frescor de almejados novos tempos.
Só para se ter uma idéia do que era o Jornalismo da Unimep operando nessas condições, nesse cenário singular. Em um determinado período, a Universidade tinha quatro jornais regulares, todos funcionando ao mesmo tempo, para diferentes públicos. O Acontece (informativo que ainda está circulando na Unimep), com notícias do cotidiano da própria Universidade; o Igreja Hoje, com informações sobre o que se passava na ebulição do cristianismo sacudido pela Teologia da Libertação, sempre com uma perspectiva ecumênica; o Jornal Popular, experiência muito incomum, que tinha sua pauta discutida e aprovada por lideranças comunitárias; e aquele que me tocava muito forte, o jornal Opção, um semanário com artigos, reportagens e notícias de atualidades, mas com foco especial na luta dos movimentos sociais, dos leigos e agentes de pastoral comprometidos com mudanças radicais nas estruturas sociais injustas e geradoras de morte.
Como tive o enorme privilégio de trabalhar nessas três últimas publicações, posso não ter a neutralidade suficiente para comentar o que elas significavam, pelo que tinham de diferencial em relação ao que geralmente se produzia em jornalismo universitário. Mas tenho que dizer que foi contagiante, apaixonante, pelo que tinham de material crítico, questionador.
É óbvio que uma movimentação dessas (com a Unimep apoiando e sediando eventos da OLP à Associação dos Favelados de Piracicaba, de solidariedade aos sandinistas da Nicarágua ao movimento das diretas-já, com a presença do deputado Dante de Oliveira) não iria passar desapercebida, incólume aos olhos dos nostálgicos de tempos mais calmos, aqueles da paz dos cemitérios. Elias já havia tido embates com nomes poderosos, como o ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, conterrâneo de Manhuaçu.
E a 12 de janeiro de 1985 Elias Boaventura foi destituído, arrancado da reitoria da Unimep por força de um golpe de grupo mais à direita entre os metodistas. Pois não é que a Universidade em peso, ou a grande maioria dela, se mobilizou pela volta de Elias à reitoria? Alguém conhece outro caso de estudantes universitários nas ruas, ocupando o campus, pelo retorno de algum reitor exonerado? Foi o que aconteceu naquela hora, dessas que mexem com os nervos e músculos da gente.
Elias acabou voltando, a Unimep retormou o seu curso revolucionário enquanto ele esteve no cargo. Quando cumpriu o mandato, foi substituído pelo seu vice, Almir de Souza Maia (que também havia sido deposto com Elias), que levou a Unimep, em termos de ensino, pesquisa e extensão, para um alto patamar no conjunto das universidades particulares brasileiras.
Boaventura continuou sua trajetória de disseminador de boas notícias, sempre trabalhando em educação, a plataforma essencial das grandes transformações. Assmann, Herrmann Neto e, agora, Boaventura. Que pena que eles já foram. Mas “não tem problema não, uai”, na frase famosa e muito repetida do eterno reitor, do cristão legítimo, enquanto fazia um movimento circular com a mão direita em direção ao interlocutor. O sonho ainda envolve, aquece e estremece o coração.
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